terça-feira, 1 de julho de 2014
segunda-feira, 30 de junho de 2014
domingo, 29 de junho de 2014
De Esposende se avista o seu barco negro. Agustina Bessa Luis
Que desgostos trazia [D. Sebastião], que a morte lhe pareceu afável e desejável? Quando o povo o esperava, vindo do nevoeiro, é porque recordava qualquer coisa de invulnerável que ele tinha por virtude própria. Era como sir Lancelot , a quem o amor poupava e por isso também o respeitava a morte. Fruto verde e perdido, menino sem mãe nem pai! De Esposende se avista, se quisemos, o seu barco negro, que espera subir o rio como um bergantim funerário, um dia. Em certas tardes paradas de Inverno, além das dunas de Fão, uma vela corre, e, se cuidarmos ir retomá-la na barra - não a veremos mais. O mugido da sereia cobre o estalido da água.
Agustina Bessa Luis, "Memória de Esposende", in Alegria do Mundo, vol. II (Escritos dos Anos de 1970 a 1974). Lisboa, Guimarães Editores, 1998, p.
Agustina Bessa Luis, "Memória de Esposende", in Alegria do Mundo, vol. II (Escritos dos Anos de 1970 a 1974). Lisboa, Guimarães Editores, 1998, p.
sábado, 28 de junho de 2014
Presente de um viajante especial. Françoise Gilot
No momento da Libertação, Hemingway fazia parte das primeira tropas americanas que entraram em Paris. Pablo achava-se ainda em casa da mãe de Maya. A porteira da rue des Grands-Augustins [atelier do artista] era uma pessoas reservada, mas pouco tímida. Estava habituada a ver os amigos admiradores de Picasso deixarem prendas, quando ele estava ausente. Por várias vezes, amigos sul-americanos tinham deixado víveres. Muitas vezes Picasso partilhava-os com a porteira. Quando ela disse a Hemingway que Pablo não estava, ele perguntou se podia deixar um recado. Segundo nos contou depois, ela propôs: "Mas não deseja deixar uma prenda para o senhor?" Hemingway respondeu que não tinha pensado nisso, mas que era uma boa ideia. Foi até ao seu jeep e voltou com uma caixa de granadas, que depôs no cubículo da porteira com a seguinte inscrição: "Para Picasso, da parte de Hemingway".
Françoise Gilot, Carlton Lake, A Minha Vida com Picasso. S/l, Publicações Europa-América, 1965, p. 64-65
Françoise Gilot, Carlton Lake, A Minha Vida com Picasso. S/l, Publicações Europa-América, 1965, p. 64-65
sexta-feira, 27 de junho de 2014
Cidade imaginária (7)
Perguntas
Quando o comandante assomou às escadas do primeiro andar da creperie, na Place de La Libération, ela já o aguardava. Chegara antes, em sinal de deferência para com quem viera de tão longe, sabendo que ele seria pontual.
O tempo estava agreste, como seria de esperar na Bretanha. O comandante vestia camisola de lã grossa, de cor natural, calças de sarja azul impecavelmente passadas. Quando a avistou, esboçou aquele seu sorriso adolescente, imprevisível num rosto severo e vincado.
Tinham-se conhecido, seis meses antes, no Clube dos Veteranos, por ocasião de uma recepção organizada em honra da fragata portuguesa que aportara à cidade. O pai, membro da direcção do Clube, insistira no convite, e ela desafiara duas amigas a fazerem-lhe companhia.
Pouco conhecia sobre Portugal e portugueses. Na escola primária, onde leccionava, havia alguns filhos de portugueses recrutados para obras. Lera as notícias de uma revolução militar recente que libertara o País, e talvez tivesse sido esse o motivo que a atraíra ao Clube.
Depois das boas-vindas, o comandante apresentara-se e convidara-a para dançar. Era um bom dançarino, tolerante para com a suas falhas, e, em retribuição, ela ofereceu-se para o guiar numa visita à cidade.
Percorreram-na nos dias seguintes e trocaram histórias de vida. Ela apercebeu-se de que estava perante um oficial com uma biografia invulgar. Ingressara como voluntário na Marinha aos dezasseis anos. Órfão de pai, trabalhava então num oficina de automóveis. Com persistência e sacrifício, concluíra, já depois dos trinta anos, estudos liceais e de engenharia, ultrapassando as barreiras de acesso ao oficialato. Retido em missões no mar, sem poder frequentar aulas regulares, tal feito era quase inimaginável.
Ela também tinha uma história singular. Fizera-se adolescente durante a ocupação alemã da cidade, um porto estratégico para o controle da navegação marítima e aérea no Norte da Europa. O pai e tios ingressaram na Resistência e ela própria se envolveu em acções de apoio aos maquisards. Os nazis retaliaram, com deportações, execuções e bombardeamentos. A reconstrução fora uma grande obra em que se empenhara com raiva e orgulho.
O nexo surgido entre ambos, na partilha de memórias reencontradas, crescera depressa. Ele tinha quase sessenta anos e ela cerca de cinquenta. – E se eu me apaixonasse por si? – inquirira, irónica, à despedida.
Seis meses depois da pergunta irrespondida, durante os quais correra o silêncio entre ambos, ela convidou-o a sentar-se. Para inquirir, de imediato:
- Comandante Armando, que o traz por cá? Que é que esta cidade tem que justifique este seu regresso? Porque me procurou?
- Perguntas, menina Danielle, a que espero responder com a sua ajuda – disse o comandante.
Publicado na edição do semanário Região de Leiria, de 26 de Junho de 2014.
Quando o comandante assomou às escadas do primeiro andar da creperie, na Place de La Libération, ela já o aguardava. Chegara antes, em sinal de deferência para com quem viera de tão longe, sabendo que ele seria pontual.
O tempo estava agreste, como seria de esperar na Bretanha. O comandante vestia camisola de lã grossa, de cor natural, calças de sarja azul impecavelmente passadas. Quando a avistou, esboçou aquele seu sorriso adolescente, imprevisível num rosto severo e vincado.
Tinham-se conhecido, seis meses antes, no Clube dos Veteranos, por ocasião de uma recepção organizada em honra da fragata portuguesa que aportara à cidade. O pai, membro da direcção do Clube, insistira no convite, e ela desafiara duas amigas a fazerem-lhe companhia.
Pouco conhecia sobre Portugal e portugueses. Na escola primária, onde leccionava, havia alguns filhos de portugueses recrutados para obras. Lera as notícias de uma revolução militar recente que libertara o País, e talvez tivesse sido esse o motivo que a atraíra ao Clube.
Depois das boas-vindas, o comandante apresentara-se e convidara-a para dançar. Era um bom dançarino, tolerante para com a suas falhas, e, em retribuição, ela ofereceu-se para o guiar numa visita à cidade.
Percorreram-na nos dias seguintes e trocaram histórias de vida. Ela apercebeu-se de que estava perante um oficial com uma biografia invulgar. Ingressara como voluntário na Marinha aos dezasseis anos. Órfão de pai, trabalhava então num oficina de automóveis. Com persistência e sacrifício, concluíra, já depois dos trinta anos, estudos liceais e de engenharia, ultrapassando as barreiras de acesso ao oficialato. Retido em missões no mar, sem poder frequentar aulas regulares, tal feito era quase inimaginável.
Ela também tinha uma história singular. Fizera-se adolescente durante a ocupação alemã da cidade, um porto estratégico para o controle da navegação marítima e aérea no Norte da Europa. O pai e tios ingressaram na Resistência e ela própria se envolveu em acções de apoio aos maquisards. Os nazis retaliaram, com deportações, execuções e bombardeamentos. A reconstrução fora uma grande obra em que se empenhara com raiva e orgulho.
O nexo surgido entre ambos, na partilha de memórias reencontradas, crescera depressa. Ele tinha quase sessenta anos e ela cerca de cinquenta. – E se eu me apaixonasse por si? – inquirira, irónica, à despedida.
Seis meses depois da pergunta irrespondida, durante os quais correra o silêncio entre ambos, ela convidou-o a sentar-se. Para inquirir, de imediato:
- Comandante Armando, que o traz por cá? Que é que esta cidade tem que justifique este seu regresso? Porque me procurou?
- Perguntas, menina Danielle, a que espero responder com a sua ajuda – disse o comandante.
Publicado na edição do semanário Região de Leiria, de 26 de Junho de 2014.
quinta-feira, 26 de junho de 2014
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Clarice Lispector
Em busca do outro.
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo (Crónicas). Lisboa, Relógio d'Água, 2013, p. 163
Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu melhor modo de ser, o meu atalho, já que não ouso mais falar em caminho. Eu que tinha querido. O Caminho, com letra maiúscula, hoje me agarro ferozmente à procura de um modo de andar, de um passo certo. Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo de luz entre as árvores, o atalho onde eu seja finalmente eu, isso não encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu, é o outro, é os outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei: eis o meu porto de chegada.
Clarice Lispector, A Descoberta do Mundo (Crónicas). Lisboa, Relógio d'Água, 2013, p. 163
quarta-feira, 25 de junho de 2014
The Natchez. Eugène Delacroix
Eugène Delacroix, The Natchez, 1835
Nota do Metropolitan Museum of Art
In 1823, Delacroix began to paint this scene from Chateaubriand’s widely read Romantic novel Atala, which narrates the fate of the Natchez tribe in the wake of the French and Indian War (1754–63). After putting the canvas aside for about a decade, he finally completed the picture for the Paris Salon of 1835. In the catalogue, Delacroix provided this explanatory note: "Fleeing the massacre of their tribe, two young savages traveled up the Mississippi River. During the voyage, the woman was taken by pain of labor. The moment is that when the father holds the newborn in his hands, and both regard him tenderly."
terça-feira, 24 de junho de 2014
Turistas e etnólogos (2). Marc Augé
É preciso, enfim, dizer que o etnólogo, no final da sua primeira viagem, elabora um quadro de reflexão que lhe servirá para dar sequência ao seu trabalho (ninguém esquece o primeiro trabalho de campo) e que orientará os seus futuros estudos, regresse ou não ao mesmo território. Em todo o caso, trata-se de uma espécie de viagem interior que deverá prosseguir, mesmo se passa pela observação atenta das semelhanças e diferenças, dos contrastes e das similitudes. O etnólogo converte-se então em antropólogo: amplia a sua reflexão, embora ela se inscreva na continuidade de um percurso. Está-se, agora, bem afastado do turista que soma viagens ao seu palmarés, outros tantos troféus de caça e aguarda a ocorrência se um novo período de férias com um entusiasmo renovado. A reflexão antropológica aprofunda-se e pode satisfazer-se com poucas deslocações. É o caso, para um certo número de colegas meus, que começaram por trabalhar fora e a seguir se reaproximaram dos seus locais, não por cansaço ou por impossibilidade de voltar a partir, mas porque tinham tomado uma consciência mais clara de qual era precisamente o seu objecto intelectual de investigação.
O antropólogo pode, claro, gostar de partir, de viajar. Mas não é forçosamente o etnólogo que comanda esse desejo. O etnólogo é, acima de tudo, caseiro, porque sabe que perseguir um fantasma é andar atrás de um conhecimento impossível. Alguma vez nos conheceremos a nós próprios? A questão tem mesmo sentido? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os outros? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os que amamos e os que nos cercam? O etnólogo terá um dia cedido à tentação de acreditar que conheceria alguns outros, uma etnia, uma cultura. E certamente que conhece um pouco mais do que no princípio, mas continua a interrogar-se sobre o estatuto desse conhecimento, sobre o que ele diz de si próprio, dos outros e da sua recíproca relação. Um dia dá-se conta que passou a vida a questionar-se sobre as mesmas coisas, e que as deslocações no espaço não lhe darão respostas mais claras; apercebe-se que, afinal, não é um explorador. Resta-lhe fazer o balanço daquilo que obteve, mas, ao contrário do viajante nostálgico, é para o futuro que se volta: para aqueles que farão outras viagens e que, dum modo ou doutro, aqui ou ali, prosseguirão, inflectirão, prolongarão o seu próprio itinerário.
A primeira parte de Tristes Trópicos intitula-se "O fim das viagens" e toda a gente se lembra da afirmação, meio excessiva, meio irritada da abertura: "Odeio as viagens e os exploradores". Esta frase provocatória tem sequência na evocação das mil pequenas misérias e momentos de desagrado que pontuam a estadia no terreno (encontra-se uma versão mais negra ainda no diário de Malinowski) e dos viajantes profissionais dos anos cinquenta, projectando as suas fotografias e contando banalidades na sala Pleyel de Paris. Mas Lévy- Strauss escreveu Tristes Trópicos. Como Michel Leiris, Georges Balandier e alguns outros, sabe que é um escritor de um género singular, que relata factos, descreve situações, analisa comportamentos e dá conta de uma experiência com a qual se comprometeu ao mesmo nível daqueles que observou. Os homens que o etnólogo observa não são uma mera espécie animal. São homens como ele, e a sua presença coloca-lhes um problema; age como um reagente na química, mexe com o eixo e tal perturbação pode ser instrutiva. Quando o etnólogo se vai embora , nem ele nem aqueles com que viveu são agora os mesmos. A actividade do etnólogo não é a de simples observação; há nesta observação uma dimensão experimental. O etnólogo não é um simples observador da história. É um actor da história, mesmo se lhe compete defendê-la. Aliás tem interesse em dar conta disso mesmo. A presença do etnólogo influi no meio observado, precisamente porque se trata da presença de um indivíduo sozinho que reflecte sobre a cultura dos outros, uma cultura que justamente aos olhos dos que nela emergiram parece natural. Reside aí o âmago da experiência que ele vive e que só consegue entender quando a descreve e escreve. O fim da viagem é essa escrita, o seu objectivo e a sua conclusão. Nesta medida, o etnólogo viaja sempre, até mesmo quando trabalha nos subúrbios de uma cidade do seu país. É um viajante do interior. Viaja entre dois estado de espírito, entre um texto por escrever e um texto já dado, entre um antes e um depois.
Ao invés do turista moderno, o consumidor que se toma por um viajante, o etnólogo é um sedentário obrigado a viajar. O turista espera o regresso das férias para voltar a partir. O etnólogo sabe que o sua estadia, por demorada que eventualmente seja, só terá sentido no regresso, quando tentar relatá-la. Se alguma coisa partilham talvez seja o encanto pelo encontro de paisagens e pessoas. Este encanto tem origem numa dupla ilusão: a da fidelidade e a do recomeço, de que a viagem, quando repetida, é uma espécie de expressão metafórica.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
O antropólogo pode, claro, gostar de partir, de viajar. Mas não é forçosamente o etnólogo que comanda esse desejo. O etnólogo é, acima de tudo, caseiro, porque sabe que perseguir um fantasma é andar atrás de um conhecimento impossível. Alguma vez nos conheceremos a nós próprios? A questão tem mesmo sentido? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os outros? Conheceremos alguma vez verdadeiramente os que amamos e os que nos cercam? O etnólogo terá um dia cedido à tentação de acreditar que conheceria alguns outros, uma etnia, uma cultura. E certamente que conhece um pouco mais do que no princípio, mas continua a interrogar-se sobre o estatuto desse conhecimento, sobre o que ele diz de si próprio, dos outros e da sua recíproca relação. Um dia dá-se conta que passou a vida a questionar-se sobre as mesmas coisas, e que as deslocações no espaço não lhe darão respostas mais claras; apercebe-se que, afinal, não é um explorador. Resta-lhe fazer o balanço daquilo que obteve, mas, ao contrário do viajante nostálgico, é para o futuro que se volta: para aqueles que farão outras viagens e que, dum modo ou doutro, aqui ou ali, prosseguirão, inflectirão, prolongarão o seu próprio itinerário.
A primeira parte de Tristes Trópicos intitula-se "O fim das viagens" e toda a gente se lembra da afirmação, meio excessiva, meio irritada da abertura: "Odeio as viagens e os exploradores". Esta frase provocatória tem sequência na evocação das mil pequenas misérias e momentos de desagrado que pontuam a estadia no terreno (encontra-se uma versão mais negra ainda no diário de Malinowski) e dos viajantes profissionais dos anos cinquenta, projectando as suas fotografias e contando banalidades na sala Pleyel de Paris. Mas Lévy- Strauss escreveu Tristes Trópicos. Como Michel Leiris, Georges Balandier e alguns outros, sabe que é um escritor de um género singular, que relata factos, descreve situações, analisa comportamentos e dá conta de uma experiência com a qual se comprometeu ao mesmo nível daqueles que observou. Os homens que o etnólogo observa não são uma mera espécie animal. São homens como ele, e a sua presença coloca-lhes um problema; age como um reagente na química, mexe com o eixo e tal perturbação pode ser instrutiva. Quando o etnólogo se vai embora , nem ele nem aqueles com que viveu são agora os mesmos. A actividade do etnólogo não é a de simples observação; há nesta observação uma dimensão experimental. O etnólogo não é um simples observador da história. É um actor da história, mesmo se lhe compete defendê-la. Aliás tem interesse em dar conta disso mesmo. A presença do etnólogo influi no meio observado, precisamente porque se trata da presença de um indivíduo sozinho que reflecte sobre a cultura dos outros, uma cultura que justamente aos olhos dos que nela emergiram parece natural. Reside aí o âmago da experiência que ele vive e que só consegue entender quando a descreve e escreve. O fim da viagem é essa escrita, o seu objectivo e a sua conclusão. Nesta medida, o etnólogo viaja sempre, até mesmo quando trabalha nos subúrbios de uma cidade do seu país. É um viajante do interior. Viaja entre dois estado de espírito, entre um texto por escrever e um texto já dado, entre um antes e um depois.
Ao invés do turista moderno, o consumidor que se toma por um viajante, o etnólogo é um sedentário obrigado a viajar. O turista espera o regresso das férias para voltar a partir. O etnólogo sabe que o sua estadia, por demorada que eventualmente seja, só terá sentido no regresso, quando tentar relatá-la. Se alguma coisa partilham talvez seja o encanto pelo encontro de paisagens e pessoas. Este encanto tem origem numa dupla ilusão: a da fidelidade e a do recomeço, de que a viagem, quando repetida, é uma espécie de expressão metafórica.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
segunda-feira, 23 de junho de 2014
Turistas e etnólogos (1). Marc Augé
Poderia esboçar aqui um paralelo entre o turista e o etnólogo. Pertencem ambos à parte do mundo mais favorecida, a que é capaz de organizar viagens de diversão ou de estudo a terras alheias. Nada disto seria motivo de escândalo se todos os homens pudessem ser turistas ou etnólogos, se a mobilidade de uns não fosse um luxo enquanto a mobilidade dos outros é um destino ou uma fatalidade. Não haveria escândalo se todos os homens indiferenciadamente fossem espectadores de si próprios. E este escândalo vale para a etnologia. Há etnólogos japoneses em África, mas não há etnólogos africanos no Japão. A etnologia que aqui me interessa dirigir-se-á, todavia, no futuro, cada vez menos para os país exóticos porque o exotismo está moribundo e porque, em ultima análise, o exotismo não constitui indubitavelmente o objecto da etnologia. A etnologia sobreviverá. Sobreviverá a si própria.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
Quanto aos turistas, nunca foram tão numerosos. Estamos na época do turismo de massa. Em resumo, poderemos dizer que as classes altas e médias dos países ricos viajam cada vez mais para fora das suas fronteiras. Os países do Sul, por seu turno, vêem no turismo um recurso financeiro e encorajam o seu desenvolvimento, apesar de os beneficiários directos desse turismo serem na maioria das vezes organizações e indivíduos que pertencem aos países desenvolvidos. Desta perspectiva, a nossa época caracteriza-se por um contraste marcante e trágico, porque os turistas procuram voluntariamente países donde partem emigrantes em condições difíceis e por vezes em perigo de vida. Estes dois movimentos de sentido contrário são um dos símbolos possíveis da globalização liberal que, sabemo-lo bem, não promove de igual modo as formas de circulação.
Comparando o etnólogo com o turista, queria tentar mostrar a traço grosso, por contraste, a originalidade da posição do etnólogo, sem reduzir por outro lado o turista à caricatura fácil, porque ele é muitas vezes realmente caricatural, mas não se reduz, enquanto indivíduo, à imagem que dá de si próprio.
O que o etnólogo tradicional (entendo por etnólogo tradicional o que parte para estudar as sociedades que se lhe apresentam como exóticas) partilha com o turista actual, é o facto de ir para fora, de se deslocalizar. Mas ele sempre se distingiu e se distingue em dois aspectos: viaja sozinho e fica muito tempo. Claro, ele parte para viver com e estudar aqueles junto e quem se dirige, e essa poderia constituir a diferença principal relativamente ao turista. Mas não podemos recusar a alguns turistas, raros sem dúvida e em todo o caso minoritários, a curiosidade, o desejo de observar e de aprender. O que verdadeiramente distingue o etnólogo é o método: a observação sistemática, solitária e prolongada.
Aprofundando a questão, há entre ambos uma outra diferença, simultaneamente mais radical e mais subtil.
O turista, nas versões mais recentes e mais luxuosas da actividade turística, quer garantir conforto físico e tranquilidade psicológica, mesmo quando tem alma de um viajante que se vê como aventureiro. Consome o exotismo, a areia, o mar, o sol e as paisagens (para não falar de outros eventuais tipos de consumo), mas está na sua casa, mesmo quando está fora. Tudo se conjuga para que assim seja: os companheiros, os comentários que trocam entre si, o conforto dos lugares, o carácter estereotipado das cadeias hoteleiras, os filmes que faz para mais tarde os visionar, após o regresso, a brevidade da estadia ou do périplo. No limite, fica em sua casa ou perto de sua casa e organiza-se de forma a reduzir os outros a uma imagem: basta-lhe ligar a televisão ou dirigir-se a um parque temático.
O etnólogo, por sua vez, faz uma experiência totalmente diferente. Procurando uma deslocalização que não se circunscreva à paisagem, ele próprio submete a sua identidade à prova dos outros. Viaja para fora de si próprio. Por um lado, é muito claramente exterior às e aos que pretende observar (quer se trate de uma aldeia, de algumas famílias, de um quarteirão urbano ou de uma empresa): terá, em primeiro lugar, de explicar a sua presença, negociar o seu estatuto de outro, de estrangeiro. Terá também de tomar consciência do papel que lhe indicam ou que lhe fazem desempenhar. Neste sentido, não poderá compreender os outros sem reconhecer previamente o lugar que lhe atribuem. Não dispõe do estatuto de extraterritorialidade que é conferido ao turista pelo nome do seu clube de férias ou da sua cadeia hoteleira. O etnólogo confronta-se como uma dupla extraterritorialidade. Necessariamente exterior ao grupo que observa, tanta aproximar-se dele intelectualmente abstraindo-se o mais possível de si próprio. Exerce aquilo a Lévi-Strauss chamou a "capacidade do sujeito de se objectivar indefinidamente" e coloca-se desta forma numa espécie de a meio caminho cultural e psicológico que marca de alguma forma o termo do seu itinerário ou a sua penúltima etapa, sendo a ultima a da escrita.
No entanto a distinção entre as duas posições é mais tênue e subtil que se possa crer, pelo menos no plano psicológico. O turista também ele, embora involuntariamente na maior parte das vezes, se coloca em situações psicológicas desconfortáveis. Basta pensar no síndroma de Stendhal (a doença induzida por uma frequência quotidiana excessiva de obras de arte em Itália) ou nas perturbações psicológicas frequentemente sentidas pelos turistas ocidentais que se dirigem a um país como a Índia e que acabam por ser alvo de um repatriamento sanitário. O turista não escreve evidentemente um estudo sobre as populações com as quais se cruza, mas por vezes as suas fotografias, os seus filmes e os seus postais acabam por constituir uma espécie de obra, pelo menos um balanço da sua experiência. Falo, evidentemente, de experiências turísticas de uma intensidade pouco comum. A média dos turistas está nos antípodas desse desconforto psicológico e desse desejo de testemunho, que se reduz para muitos a alguns clichés um pouco narcisistas.
Marc Augé, "Le scandale du turisme", in Pour une Anthropologie de la Mobilité. Paris, Payot, 2009, p. 56-68.
domingo, 22 de junho de 2014
sábado, 21 de junho de 2014
Viajar segundo Montaigne (3)
Quanto ao argumento da velhice que contra mim brandem, respondo que é, pelo contrário, à juventude que cabe sujeitar-se às opiniões comuns e sacrificar-se pelos outros. Está ela em condições de satisfazer igualmente ao público e a si: nós já temos demasiado que fazer só connosco próprios. À medida que os bens naturais nos vão faltando, passamos a sustentarmo-nos com os artificiais. É uma injustiça desculpar a juventude por se entregar aos seus prazeres e proibir a velhice de os procurar. Jovem, eu cobria sob o manto da prudência os meus sentimentos joviais; velho, apaziguo os de tristeza com o desregramento. Aliás, as leis de Platão proíbem que se viaje antes dos quarenta ou cinquenta anos para tornar as viagens mais úteis e instrutivas; eu de melhor grado subscreveria essoutro segundo artigo das mesmas leis que as interdita depois dos sessenta - "Mas na vossa idade, já não regressareis de um tão longo périplo!" Que me importa? Não o empreendo nem com o intuito de regressar nem com o de ir até ao fim; tenciono apenas pôr-me em andamento enquanto andar me apraz. E passeio-me tão-só para me passear. Os que correm atrás de um benefício ou de uma lebre não correm; correm aqueles que o fazem por jogo e por exercício.
O meu itinerário pode- se interromper em qualquer ponto: não se baseia em grandes expectativas; cada jornada cumpre o seu objectivo. E a viagem da minha vida processa-se da mesma maneira. Vi, assim, bastantes lugares distantes onde desejaria haver-me detido. E porque não, de Crisipo, Cleantes, Diógenes, Zenão e Antípatro, todos eles sábios da seita mais carrancuda, abandonaram a sua terra sem nenhuma razão de queixa dela, movidos tão-só pelo intuito de mudarem de ares? Decerto o que mais me apraz nas minhas peregrinações é que não possa ir para elas com a resolução de estabelecer residência onde muito bem me aprouver, e que me seja sempre indispensável dispor-me a regressar, para me acomodar às maneiras comuns de proceder.
Se tivesse medo de morrer noutro lugar que não o do meu nascimento, se pensasse que, longe dos meus, morreria menos à vontade, dificilmente me ausentaria de França, nem sequer sairia da minha paróquia sem terror. Sinto a morte continuamente pinçar-me quer a garganta quer os rins. Mas sou feito de outro modo: a morte é uma e a mesma coisa para mim em qualquer parte. Se, todavia, tivesse que escolher, gostaria antes, creio-o, de morrer a cavalo, longe da casa e dos meus, que no meu leito. Há mais descoroçoamento que reconforto em fazer as últimas despedidas aos amigos.
[...] Para acabar de expor as minhas fraquezas, confesso que, viajando, nunca chego a nenhuma pousada onde não me passe pela cabeça perguntar-me se eu aí poderia tranquilamente estar doente ou moribundo.
[...] Tenho a compleição mais adaptável e a melhor boca do mundo. A diversidade dos usos nacionais não me afecta senão pelo prazer da variedade. Cada costume tem a sua razão.
[...] É um acaso raro, mas de inestimável consolo, dispor da companhia de um homem de bem, de juízo sólido e costumes conformes com os vossos, que goste de seguir convosco. Tenho enormemente sentido a falta de um assim em todas as minhas viagens. Mas uma tal companhia, preciso é tê-la escolhido e garantido à partida. Nenhum prazer me dá gosto se o não posso partilhar. Nem uma única feliz ideia me vem à mente que não me sinta irritado por havê-la tido sozinho sem ninguém a quem apresentá-la.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
O meu itinerário pode- se interromper em qualquer ponto: não se baseia em grandes expectativas; cada jornada cumpre o seu objectivo. E a viagem da minha vida processa-se da mesma maneira. Vi, assim, bastantes lugares distantes onde desejaria haver-me detido. E porque não, de Crisipo, Cleantes, Diógenes, Zenão e Antípatro, todos eles sábios da seita mais carrancuda, abandonaram a sua terra sem nenhuma razão de queixa dela, movidos tão-só pelo intuito de mudarem de ares? Decerto o que mais me apraz nas minhas peregrinações é que não possa ir para elas com a resolução de estabelecer residência onde muito bem me aprouver, e que me seja sempre indispensável dispor-me a regressar, para me acomodar às maneiras comuns de proceder.
Se tivesse medo de morrer noutro lugar que não o do meu nascimento, se pensasse que, longe dos meus, morreria menos à vontade, dificilmente me ausentaria de França, nem sequer sairia da minha paróquia sem terror. Sinto a morte continuamente pinçar-me quer a garganta quer os rins. Mas sou feito de outro modo: a morte é uma e a mesma coisa para mim em qualquer parte. Se, todavia, tivesse que escolher, gostaria antes, creio-o, de morrer a cavalo, longe da casa e dos meus, que no meu leito. Há mais descoroçoamento que reconforto em fazer as últimas despedidas aos amigos.
[...] Para acabar de expor as minhas fraquezas, confesso que, viajando, nunca chego a nenhuma pousada onde não me passe pela cabeça perguntar-me se eu aí poderia tranquilamente estar doente ou moribundo.
[...] Tenho a compleição mais adaptável e a melhor boca do mundo. A diversidade dos usos nacionais não me afecta senão pelo prazer da variedade. Cada costume tem a sua razão.
[...] É um acaso raro, mas de inestimável consolo, dispor da companhia de um homem de bem, de juízo sólido e costumes conformes com os vossos, que goste de seguir convosco. Tenho enormemente sentido a falta de um assim em todas as minhas viagens. Mas uma tal companhia, preciso é tê-la escolhido e garantido à partida. Nenhum prazer me dá gosto se o não posso partilhar. Nem uma única feliz ideia me vem à mente que não me sinta irritado por havê-la tido sozinho sem ninguém a quem apresentá-la.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
sexta-feira, 20 de junho de 2014
Viajar segundo Montaigne (2)
Apesar de sujeito a cólicas, mantenho-me a cavalo sem desmontar, e sem me aborrecer, umas oito a dez horas - "Mais que o permitem as forças e a condição da velhice" (Virgílio, Eneida, VI, 114). Nenhum clima me é inimigo, excepto o calor áspero de um sol abrasador, já que os guarda-sóis que se usam em tília deste os tempos de Roma antiga, cansam mais os braços que descansam a cabeça. Gostaria de saber qual a técnica usada pelos Persas, em tempos tão remotos e quando o luxo primeiro surgiu, para produzir vento fresco e sombras a seu talante, como conta Xenofonte. Gosto de chuva e de lama tal como os patos. A mudança de ares e de clima não me afecta: tanto se me dá que tempo faça. As únicas alterações que me atingem são as produzo dentro de mim, e essas são menos frequentes quando viajo.
Sou difícil de mover, mas uma vez posto a caminho, vou tão longe quanto se quiser. Custa-me tanto abalançar-me aos pequenos empreendimentos como aos grandes e tanto aprestar-me para uma jornada de visita a um vizinho como para uma viagem propriamente dita. Habituei-me a fazer as minhas jornadas à espanhola, de uma só tirada, jornadas grandes e razoáveis; e quando a canícula mais aperta, faço-as de noite, do pôr-do-sol ao alvorecer. A alternativa - tomar as refeições numa pousada de caminho à pressa em em tumulto - é incómoda, especialmente quando os dias são curtos. Os meus cavalos também passam melhor com o meu método. Nunca nenhum que haja sido capaz de comigo aguentar a primeira jornada me veio a ficar mal. Dou-lhe de beber em toda a parte e velo tão-só por que lhe reste bastante caminho para digerir a água. A minha preguiça a levantar-me dá ensejo aos que me acompanham de dejejuarem descansados antes de nos lançarmos à estrada. Quanto a mim, nunca é tarde de mais para comer: o apetite vem-me em comendo e não de outro modo; só tenho fome à mesa.
Alguns deploram que me agrade continuar a prática deste exercício estando cansado e velho. Não têm razão. A melhor altura para nos apartarmos da família é quando a tivermos em condições de prosseguir sem nós, quando a deixarmos em ordem tal que na nossa ausência não desminta a sua situação anterior. É bem mais imprudente ir para longe de casa deixando-a à guarda de quem seja menos fiel e menos se interesse em prover às nossas necessidades.
[...] Quanto aos deveres da amizade marital serem segundo se pensa, lesados por uma tal ausência, não o creio. Trata-se, pelo contrário, de uma relação que amiúde arrefece por causa de uma presença demasiado contínua e que é prejudicada pela assiduidade. Qualquer mulher que não seja a nossa nos parece de bom convívio. E cada um sabe por experiência que o ver-se continuamente não pode proporcionar o prazer causado pelo separar-se e reunir-se a intervalos. Tais interrupções enchem-me de um renovado amor pelos meus e tornam-me mais agradável o voltar a estar em casa: a alternância aviva-me consecutivamente o apetite num e noutro sentido.
[...] Desde Roma, mantenho e vejo a minha casa e os bens que lá deixei: vejo as minhas muralhas, as minhas árvores e as minhas rendas crescerem ou decrescerem quase tão de perto como quando lá estou - "Diante dos meus olhos flutua a minha casa e a imagem daqueles lugares" (Ovídio, Tristia, III, iv, 57).
Se fruíssemos apenas daquilo que temos à mão de semear: adeus, escudos que estão nos nossos cofres! adeus, filhos que foram à caça! Queremo-los mais perto. No jardim é longe? E a meia jornada de distancia? Ora bem, e dez léguas é longe ou perto? Se for perto, que dizer, então, de onze, doze ou treze, e por aí adiante.
Sou difícil de mover, mas uma vez posto a caminho, vou tão longe quanto se quiser. Custa-me tanto abalançar-me aos pequenos empreendimentos como aos grandes e tanto aprestar-me para uma jornada de visita a um vizinho como para uma viagem propriamente dita. Habituei-me a fazer as minhas jornadas à espanhola, de uma só tirada, jornadas grandes e razoáveis; e quando a canícula mais aperta, faço-as de noite, do pôr-do-sol ao alvorecer. A alternativa - tomar as refeições numa pousada de caminho à pressa em em tumulto - é incómoda, especialmente quando os dias são curtos. Os meus cavalos também passam melhor com o meu método. Nunca nenhum que haja sido capaz de comigo aguentar a primeira jornada me veio a ficar mal. Dou-lhe de beber em toda a parte e velo tão-só por que lhe reste bastante caminho para digerir a água. A minha preguiça a levantar-me dá ensejo aos que me acompanham de dejejuarem descansados antes de nos lançarmos à estrada. Quanto a mim, nunca é tarde de mais para comer: o apetite vem-me em comendo e não de outro modo; só tenho fome à mesa.
Alguns deploram que me agrade continuar a prática deste exercício estando cansado e velho. Não têm razão. A melhor altura para nos apartarmos da família é quando a tivermos em condições de prosseguir sem nós, quando a deixarmos em ordem tal que na nossa ausência não desminta a sua situação anterior. É bem mais imprudente ir para longe de casa deixando-a à guarda de quem seja menos fiel e menos se interesse em prover às nossas necessidades.
[...] Quanto aos deveres da amizade marital serem segundo se pensa, lesados por uma tal ausência, não o creio. Trata-se, pelo contrário, de uma relação que amiúde arrefece por causa de uma presença demasiado contínua e que é prejudicada pela assiduidade. Qualquer mulher que não seja a nossa nos parece de bom convívio. E cada um sabe por experiência que o ver-se continuamente não pode proporcionar o prazer causado pelo separar-se e reunir-se a intervalos. Tais interrupções enchem-me de um renovado amor pelos meus e tornam-me mais agradável o voltar a estar em casa: a alternância aviva-me consecutivamente o apetite num e noutro sentido.
[...] Desde Roma, mantenho e vejo a minha casa e os bens que lá deixei: vejo as minhas muralhas, as minhas árvores e as minhas rendas crescerem ou decrescerem quase tão de perto como quando lá estou - "Diante dos meus olhos flutua a minha casa e a imagem daqueles lugares" (Ovídio, Tristia, III, iv, 57).
Se fruíssemos apenas daquilo que temos à mão de semear: adeus, escudos que estão nos nossos cofres! adeus, filhos que foram à caça! Queremo-los mais perto. No jardim é longe? E a meia jornada de distancia? Ora bem, e dez léguas é longe ou perto? Se for perto, que dizer, então, de onze, doze ou treze, e por aí adiante.
Montaigne, "Da Vaidade", in Ensaios (Antologia). Introdução, tradução e notas de Rui Bertrand Romão. Lisboa, Relógio d'Água, 1998, p. 249-314.
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