As coisas mais simples, ouço-as no intervalo do vento, quando um simples bater de chuva nos vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma voz cansada, que repete incansavelmente o que a noite ensina a quem a vive; de outras vezes, corre, apressada, atropelando sentidos e frases como se quisesse chegar ao fim, mais depressa do que a madrugada. São coisas simples como a areia que se apanha, e escorre por entre os dedos enquanto os olhos procuram uma linha nítida no horizonte; ou são as coisas que subitamente lembramos, quando o sol emerge num breve rasgão de nuvem. Estas são as coisas que passam, quando o vento fica; e são elas que tentamos lembrar, como se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos vidros não tivesse apagado a sua voz.
Assim, Começou assim Uma coisa sem graça Coisa boba que passa Que ninguém percebeu
Assim, Depois ficou assim Quis fazer um carinho, Receber um carinho, E você percebeu
Fez-se uma pausa no tempo Cessou todo meu pensamento E como acontece uma flor Também acontece o amor
Assim, Sucedeu assim, E foi tão de repente Que a cabeça da gente Vira só coração Não poderia supor Que o amor nos pudesse prender, Abriu-se em meu peito um vulcão E nasceu a paixão
Meu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo. Teus braços são a flor do aloendro. Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo. Teus olhos são da cor do sofrimento.
Amor-país. Quero cantar-te. Como quem diz:
O nosso amor é sangue. É seiva. É sol. É Primavera. Amor intenso. amor imenso. amor instante. O nosso amor é uma arma. É uma espera. O nosso amor é um cavalo alucinante.
O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa. Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa. Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo. O nosso amor é como a flor do aloendro.
Deixa-me soltar estas palavras amarradas para escrever com sangue o nome que inventei. Romper. Ganhar a voz duma assentada. Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada. Amor-verdade. Amor-cidade. Amor-combate. Amor-abril. Este amor de liberdade.
Desciam a Calçada do Combro, Lisboa ardia naquela tarde de fim de verão, as duas queixando-se "deste tempo em que as estações já não querem dizer nada". Recordaram ambas as tardes em que iam com as mães à Baixa, comprar tecido para os "fatos de meia-estação"…
Entram num café, que ainda se chama "leitaria", as mesas ocupadas por mulheres do bairro, que discutem, com a mulher ao balcão, doenças, insónias e falta de dinheiro. Arranjam uma mesa ao fundo. De repente ela olha em volta e desata a rir: "Há mais de 30 anos que não entrava aqui!"
A amiga não percebe, é só uma leitaria de bairro. Ainda a rir, ela acrescenta:
"Era aqui que o Miguel vinha ter comigo… E fica sabendo que eu podia ser a dona disto!"
Nunca contara a história a ninguém. Nem sequer ao Miguel, que nunca entendeu por que razão, de um dia para o outro, ela decidira esperá-lo noutro lugar, longe dali.
Todos os dias, depois das sete, ela entrava e escolhia a mesa que dava para a rua, para melhor poder ver o Miguel a aproximar-se. Tinham pouco mais de 20 anos, estavam apaixonados, um dia iriam casar-se e seriam felizes para sempre. O Sr.Joaquim, dono da leitaria, seguia aquele namoro com benevolência, sorrisos e compreensão.
Às vezes o Miguel atrasava-se, às vezes não chegava e ela voltava para casa, sem saber o que tinha acontecido. Em casa, com a mãe sempre a vigiar-lhe os passos, era impossível telefonar. Tinha de esperar pelo dia seguinte, pelas sete horas, pela mesa na leitaria do Sr. Joaquim.
Um dia, desses em que o Miguel faltara, o Sr. Joaquim aproximou-se da mesa.
"A menina dá-me licença?"
E antes que ela pudesse dizer fosse o que fosse, sentou-se na sua frente.
"Se a menina quisesse…"
E ela sem entender, e ele:
"O seu namorado não a merece, a menina aqui à espera dele e ele nem aparece, e não são uma nem duas vezes, que eu bem noto, ouça bem o que eu lhe digo, mande-o à vida antes que seja tarde, aquilo não é futuro para a menina…"
E ela sem conseguir dizer nada, a olhar para o Sr. Joaquim, para o cabelo muito preto a tresandar a Restaurador Olex do Sr. Joaquim, e ele no seu discurso imparável:
"Se a menina quisesse, eu podia fazê-la muito feliz, ficava com esta leitaria, punha-lhe uma casa com tudo o que a menina quisesse, nada lhe faltava, seria sempre muito estimada, nem precisava de trabalhar…"
Aproveitando uma pausa providencial, ela sorri, diz qualquer coisa como "obrigada", e sai disparada, sem olhar para trás.
Nunca mais ali tinha entrado.
"Tinha sido o teu futuro…" - exclama a amiga, no meio de uma gargalhada -, "estavas hoje a servir galões e bolos de arroz às velhas… Diz lá se não tinha sido melhor do que teres passado a vida a corrigir testes…" Alice Vieira, in Se a menina quisesse
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998 Clarice Lispector
Tragam-me esquecimento em travessas! Quero comer o abandono da vida! Quero perder o hábito de gritar para dentro. Arre, já basta! Não sei o quê. mas já basta... Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje? Viver amanhã por ter adiado hoje? Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo? Que gargalhadas daria quem pudesse rir! E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera — Antes fosse outro... Ter de subir já! Ninguém me obriga, mas deixai-o passar, porquê? Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida... Que náusea no estômago real que é a alma consciente! Que sono bom o ser outra pessoa qualquer... Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios... Não, não compreendo nada... Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...
28-5-1930 Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 123.
BALADA DAS MENINAS DE BICICLETA Rio de Janeiro , 1946
Meninas de bicicleta Que fagueiras pedalais Quero ser vosso poeta! Ó transitórias estátuas Esfuziantes de azul Louras com peles mulatas Princesas da zona sul: As vossas jovens figuras Retesadas nos selins Me prendem, com serem puras Em redondilhas afins. Que lindas são vossas quilhas Quando as praias abordais! E as nervosas panturrilhas Na rotação dos pedais: Que douradas maravilhas! Bicicletai, meninada Aos ventos do Arpoador Solta a flâmula agitada Das cabeleiras em flor Uma correndo à gandaia Outra com jeito de séria Mostrando as pernas sem saia Feitas da mesma matéria. Permanecei! vós que sois O que o mundo não tem mais Juventude de maiôs Sobre máquinas da paz Enxames de namoradas Ao sol de Copacabana Centauresas transpiradas Que o leque do mar abana! A vós o canto que inflama Os meus trint'anos, meninas Velozes massas em chama Explodindo em vitaminas. Bem haja a vossa saúde À humanidade inquieta Vós cuja ardente virtude Preservais muito amiúde Com um selim de bicicleta Vós que levais tantas raças Nos corpos firmes e crus: Meninas, soltai as alças Bicicletai seios nus! No vosso rastro persiste O mesmo eterno poeta Um poeta - essa coisa triste Escravizada à beleza Que em vosso rastro persiste, Levando a sua tristeza No quadro da bicicleta.
Decididamente a palavra quer entrar no poema e dispõe com caligráfica raiva do que o poeta no poema põe.
Entretanto o poema subsiste informal em teus olhos talvez mas perdido se em precisa palavra significas o que vês.
Virtualmente teus cabelos sabem se espalhando avencas no travesseiro que se eu digo prodigiosos cabelos as insólitas flores que se abrem não têm sua cor nem seu cheiro.
Finalmente vejo-te e sei que o mar o pinheiro a nuvem valem a pena e é assim que sem poetizar se faz a si mesmo o poema.
Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal? Como sabem as estações do ano que devem trocar de camisa? Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois? E como as raízes sabem que devem alçar-se até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores? É sempre a mesma primavera que repete seu papel? E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?
Não é obra do acaso, apenas. É preciso saber escolher o momento, senti-lo, saber enquadrar, saber fotografar. É preciso sensibilidade, competência, intuição, saber.
FLAMINGO Desenho o quatro e permaneço estável em equilíbrio imóvel. Preguiça de domingo? Não! Repouso. Quando voo, voo. Quando poiso, pouso.
" DO PECADO DA OCIOSIDADE Da ociosidade em nosso linguagem seu nome mais apropriado é preguiça, assi que todo erro da preguiça procede da ociosidade. E dela vem mal, tarde e fracamente começar, continuar e acabar as cousas que bem e cedo se devem fazer. E aquesto por estas seis deferenças, scilicet. Primeira, per apertamento, empacho e fraqueza do coraçom. Segunda, do desejar e seguir sobejo vida folgada e viçosa. Terceira, de pospoer os feitos. Quarta, por seer movediço e de mao assessego per cuidado, falas ociosas e obras sem proveito. Quinta, por haver pequena lembrança, sentido, avisamento e percebimento pera o que convem fazer. Sexta, por seer deleixado, froxo, e tardinheiro em as cousas que faz. Per todas estas partes, ou cada ua delas, a meu juizo erramos per ociosidade segundo se pode sentir quem em si e nos outros bem consiirar."
Dom Duarte, LEAL CONSELHEIRO, edição crítica de Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, IN-CM, 1998, Cap. XXVI, pp. 102.
Se eu fosse um dia o teu olhar Frio O mar Por entre o corpo Fraco de lutar Quente, O chão Onde te estendo Onde te levo a razão. Longa a noite E só o sol Quebra o silêncio, Madrugada de cristal. Leve, lento, nu, fiel E este vento Que te navega na pele. Pede-me a paz Dou-te o mundo Louco, livre assim sou eu (Um pouco +...) Solta-te a voz lá do fundo, Grita, mostra-me a cor do céu. Se eu fosse um dia o teu olhar, E tu as minhas mãos também, se eu fosse um dia o respirar E tu perfume de ninguém. Se eu fosse um dia o teu olhar, E tu as minhas mãos também, se eu fosse um dia o respirar E tu perfume de ninguém. Sangue, Ardente, Fermenta e torna aos Dedos de papel. Luz, Dormente, Suavemente pinta o teu rosto a pincel. Largo a espera, E sigo o sul, Perco a quimera Meu anjo azul. Fica, forte, sê amada, Quero que saibas Que ainda não te disse nada. Pede-me a paz Dou-te o mundo Louco, livre assim sou eu (Um pouco +...) Solta-te a voz lá do fundo, Grita, mostra-me a cor do céu. Refrão
Caros leitores e comentadores deste blogue: a viajante surpreendida por mim na margem direita do Douro parou para comunicar. Este blogue pára para ganhar fôlego, aspirando continuar a comunicar. A todos se agradece o estímulo trazido ao blogue, num momento em que o seu responsável debatia consigo próprio se valia a pena persistir na fórmula. Afinal, a fórmula encontrada espontaneamente, com o contributo essencial dos comentários, foi diferente: um tema, logo a seguir tocado em distintas declinações, por espíritos inteligentes, cultos, que em tudo superam o do autor, com ele se correspondendo em inquietação e trepidação. Férias merecidas para todos!
Todos merecemos uma pausa, mas vou sentir a falta desta companhia diária, ao mesmo tempo surpreendente e estimulante. Boas férias! Fico à espera da rentrée! Com expectativa!
Compreende-se que o autor do blogue deseje introduzir uma pausa no seu labor e partir para férias. Tem todo o direito! E compreende-se que sinta que, de certo modo ou a partir de certa altura, a fórmula re-encontrada para o seu blogue lhe tenha "fugido das mãos", para se transformar num lugar de contribuições muitas vezes excessivas ou desajustadas. Contudo, vai fazer-nos falta a sempre bela "imago mundi" que os seus posts traziam até nós, bem como os comentários que verdadeiramente o eram, pela pertinência uns, pelo engenho outros.
Não me parecem nem excessivas nem desajustadas as contribuições dos comentadores. Nem mesmo as que falsificam aquelas como excessivas ou desajustadas. Em regra publico-as todas e só não agradeço um a um os posts disponibilizados para não parecer (isso sim) excessivo ou desajustado. De resto não vou de férias, a pausa no blogue para mim é técnica e serve para realimentar reservatórios de escritos e imagens sobre viagens e viajantes. Obrigado M.N., que a vontade de participar, lhe não esmoreça.
"CORO DAS AVES: Ei, tu aí! Estás a ouvir? É contigo que estou a falar.
POUPA: Chamaste?
CORO DAS AVES: Esses dois fulanos, leva-os contigo e dá-lhes de almoçar. E o rouxinol, de voz doce, que canta com as Musas, manda-o cá e deixa-o aqui connosco, para gozarmos um pouco da companhia dele!"
Aristófanes, AS AVES, Trad. de Maria de Fátima Sousa e Silva, Lisboa, edições 70, 1989, pp. 110-111.
Agradeço a todos os comentadores o desafio e a companhia... O meu mais sentido bem-haja ao Autor pela sua generosidade, cultura, erudição e lucidez. Durante algum tempo pude usufruir de duas alvoradas...
"O fio da esperança move-se. Ascende. Em cada pérola, olha. Olha fixamente esta palavra que o designa _______ infinitamente. E, Como um colar dos dias, desfia-a de si próprio ou de si mesma, Extraia-a do infinito. Surge vazia, ou seja, o jardim abismático Onde vivemos." - Maria Gabriela Llansol (2003) O Começo de um livro é precioso. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 307)
É o que lhe ofereço neste momento, João. Agradeço-lhe muito este blogue. A pausa também é viagem. E viaja.
POEMA
ResponderEliminarAs coisas mais simples, ouço-as no intervalo
do vento, quando um simples bater de chuva nos
vidros rompe o silêncio da noite, e o seu ritmo
se sobrepõe ao das palavras. Por vezes, é uma
voz cansada, que repete incansavelmente
o que a noite ensina a quem a vive; de outras
vezes, corre, apressada, atropelando sentidos
e frases como se quisesse chegar ao fim, mais
depressa do que a madrugada. São coisas simples
como a areia que se apanha, e escorre por
entre os dedos enquanto os olhos procuram
uma linha nítida no horizonte; ou são as
coisas que subitamente lembramos, quando
o sol emerge num breve rasgão de nuvem.
Estas são as coisas que passam, quando o vento
fica; e são elas que tentamos lembrar, como
se as tivéssemos ouvido, e o ruído da chuva nos
vidros não tivesse apagado a sua voz.
Nuno Júdice, Lisboa, Dom Quixote, 2006
Sucedeu Assim
ResponderEliminarAssim,
Começou assim
Uma coisa sem graça
Coisa boba que passa
Que ninguém percebeu
Assim,
Depois ficou assim
Quis fazer um carinho,
Receber um carinho,
E você percebeu
Fez-se uma pausa no tempo
Cessou todo meu pensamento
E como acontece uma flor
Também acontece o amor
Assim,
Sucedeu assim,
E foi tão de repente
Que a cabeça da gente
Vira só coração
Não poderia supor
Que o amor nos pudesse prender,
Abriu-se em meu peito um vulcão
E nasceu a paixão
Tom Jobim
Amor Combate
ResponderEliminarMeu amor que eu não sei. Amor que eu canto. Amor que eu digo.
Teus braços são a flor do aloendro.
Meu amor por quem parto. Por quem fico. Por quem vivo.
Teus olhos são da cor do sofrimento.
Amor-país.
Quero cantar-te. Como quem diz:
O nosso amor é sangue. É seiva. É sol. É Primavera.
Amor intenso. amor imenso. amor instante.
O nosso amor é uma arma. É uma espera.
O nosso amor é um cavalo alucinante.
O nosso amor é pássaro voando. Mas à toa.
Rasgando o céu azul-coragem de Lisboa.
Amor partindo. Amor sorrindo. Amor doendo.
O nosso amor é como a flor do aloendro.
Deixa-me soltar estas palavras amarradas
para escrever com sangue o nome que inventei.
Romper. Ganhar a voz duma assentada.
Dizer de ti as coisas que eu não sei.
Amor. Amor. Amor. Amor de tudo ou nada.
Amor-verdade. Amor-cidade.
Amor-combate. Amor-abril.
Este amor de liberdade.
JOAQUIM PESSOA
Desciam a Calçada do Combro, Lisboa ardia naquela tarde de fim de verão, as duas queixando-se "deste tempo em que as estações já não querem dizer nada". Recordaram ambas as tardes em que iam com as mães à Baixa, comprar tecido para os "fatos de meia-estação"…
ResponderEliminarEntram num café, que ainda se chama "leitaria", as mesas ocupadas por mulheres do bairro, que discutem, com a mulher ao balcão, doenças, insónias e falta de dinheiro. Arranjam uma mesa ao fundo. De repente ela olha em volta e desata a rir: "Há mais de 30 anos que não entrava aqui!"
A amiga não percebe, é só uma leitaria de bairro. Ainda a rir, ela acrescenta:
"Era aqui que o Miguel vinha ter comigo… E fica sabendo que eu podia ser a dona disto!"
Nunca contara a história a ninguém. Nem sequer ao Miguel, que nunca entendeu por que razão, de um dia para o outro, ela decidira esperá-lo noutro lugar, longe dali.
Todos os dias, depois das sete, ela entrava e escolhia a mesa que dava para a rua, para melhor poder ver o Miguel a aproximar-se. Tinham pouco mais de 20 anos, estavam apaixonados, um dia iriam casar-se e seriam felizes para sempre. O Sr.Joaquim, dono da leitaria, seguia aquele namoro com benevolência, sorrisos e compreensão.
Às vezes o Miguel atrasava-se, às vezes não chegava e ela voltava para casa, sem saber o que tinha acontecido. Em casa, com a mãe sempre a vigiar-lhe os passos, era impossível telefonar. Tinha de esperar pelo dia seguinte, pelas sete horas, pela mesa na leitaria do Sr. Joaquim.
Um dia, desses em que o Miguel faltara, o Sr. Joaquim aproximou-se da mesa.
"A menina dá-me licença?"
E antes que ela pudesse dizer fosse o que fosse, sentou-se na sua frente.
"Se a menina quisesse…"
E ela sem entender, e ele:
"O seu namorado não a merece, a menina aqui à espera dele e ele nem aparece, e não são uma nem duas vezes, que eu bem noto, ouça bem o que eu lhe digo, mande-o à vida antes que seja tarde, aquilo não é futuro para a menina…"
E ela sem conseguir dizer nada, a olhar para o Sr. Joaquim, para o cabelo muito preto a tresandar a Restaurador Olex do Sr. Joaquim, e ele no seu discurso imparável:
"Se a menina quisesse, eu podia fazê-la muito feliz, ficava com esta leitaria, punha-lhe uma casa com tudo o que a menina quisesse, nada lhe faltava, seria sempre muito estimada, nem precisava de trabalhar…"
Aproveitando uma pausa providencial, ela sorri, diz qualquer coisa como "obrigada", e sai disparada, sem olhar para trás.
Nunca mais ali tinha entrado.
"Tinha sido o teu futuro…" - exclama a amiga, no meio de uma gargalhada -, "estavas hoje a servir galões e bolos de arroz às velhas… Diz lá se não tinha sido melhor do que teres passado a vida a corrigir testes…"
Alice Vieira, in Se a menina quisesse
Muitas coisas que me aconteceram tão piores que estas, eu já perdoei. No entanto essa não posso sequer entender agora: o jogo de dados de um destino é irracional? É impiedoso. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge - minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me comprar depressa um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa - mas o rosto ainda nu não tinha a máscara de moça que cobriria minha tão exposta vida infantil - fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava.
ResponderEliminarQuando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim. E, como nas histórias que eu havia lido, sobre fadas que encantavam e desencantavam pessoas, eu fora desencantada; não era mais uma rosa, era de novo uma simples menina. Desci até a rua e ali de pé eu não era uma flor, era um palhaço pensativo de lábios encarnados. Na minha fome de sentir êxtase, às vezes começava a ficar alegre mas com remorso lembrava-me do estado grave de minha mãe e de novo eu morria.
Só horas depois é que veio a salvação. E se depressa agarrei-me a ela é porque tanto precisava me salvar. Um menino de uns 12 anos, o que para mim significava um rapaz, esse menino muito bonito parou diante de mim e, numa mistura de carinho, grossura, brincadeira e sensualidade, cobriu meus cabelos já lisos de confete: por um instante ficamos nos defrontando, sorrindo, sem falar. E eu então, mulherzinha de 8 anos, considerei pelo resto da noite que enfim alguém me havia reconhecido: eu era, sim, uma rosa.
in "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998
Clarice Lispector
ResponderEliminarPARAGEM. ZONA
Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê. mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz de hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico — o de que eu estou à espera —
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixai-o passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...
Já compreendo porque é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...
28-5-1930
Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 123.
BALADA DAS MENINAS DE BICICLETA
ResponderEliminarRio de Janeiro , 1946
Meninas de bicicleta
Que fagueiras pedalais
Quero ser vosso poeta!
Ó transitórias estátuas
Esfuziantes de azul
Louras com peles mulatas
Princesas da zona sul:
As vossas jovens figuras
Retesadas nos selins
Me prendem, com serem puras
Em redondilhas afins.
Que lindas são vossas quilhas
Quando as praias abordais!
E as nervosas panturrilhas
Na rotação dos pedais:
Que douradas maravilhas!
Bicicletai, meninada
Aos ventos do Arpoador
Solta a flâmula agitada
Das cabeleiras em flor
Uma correndo à gandaia
Outra com jeito de séria
Mostrando as pernas sem saia
Feitas da mesma matéria.
Permanecei! vós que sois
O que o mundo não tem mais
Juventude de maiôs
Sobre máquinas da paz
Enxames de namoradas
Ao sol de Copacabana
Centauresas transpiradas
Que o leque do mar abana!
A vós o canto que inflama
Os meus trint'anos, meninas
Velozes massas em chama
Explodindo em vitaminas.
Bem haja a vossa saúde
À humanidade inquieta
Vós cuja ardente virtude
Preservais muito amiúde
Com um selim de bicicleta
Vós que levais tantas raças
Nos corpos firmes e crus:
Meninas, soltai as alças
Bicicletai seios nus!
No vosso rastro persiste
O mesmo eterno poeta
Um poeta - essa coisa triste
Escravizada à beleza
Que em vosso rastro persiste,
Levando a sua tristeza
No quadro da bicicleta.
Vinicius de Moraes
ResponderEliminarDecididamente a palavra
quer entrar no poema e dispõe
com caligráfica raiva
do que o poeta no poema põe.
Entretanto o poema subsiste
informal em teus olhos talvez
mas perdido se em precisa palavra
significas o que vês.
Virtualmente teus cabelos sabem
se espalhando avencas no travesseiro
que se eu digo prodigiosos cabelos
as insólitas flores que se abrem
não têm sua cor nem seu cheiro.
Finalmente vejo-te e sei que o mar
o pinheiro a nuvem valem a pena
e é assim que sem poetizar
se faz a si mesmo o poema.
Natália Correia, in "O Vinho e a Lira"
Se todos os rios são doces, de onde o mar tira o sal?
ResponderEliminarComo sabem as estações do ano que devem trocar de camisa?
Por que são tão lentas no inverno e tão agitadas depois?
E como as raízes sabem que devem alçar-se até a luz e saudar o ar com tantas flores e cores?
É sempre a mesma primavera que repete seu papel?
E o outono?... ele chega legalmente ou é uma estação clandestina?
Pablo Neruda
Se eu fosse poeta, gostaria de escrever um poema inspirado por esta belíssima fotografia! Pena não ser! A fotografia merece, porque inspira!
ResponderEliminarObrigado, pela referencia à fotografia. Trata-se verdadeiramente de um acaso fotográfico. Nada foi encenado, limitei-me a registar o momento.
EliminarNão é obra do acaso, apenas. É preciso saber escolher o momento, senti-lo, saber enquadrar, saber fotografar. É preciso sensibilidade, competência, intuição, saber.
EliminarFLAMINGO
ResponderEliminarDesenho o quatro
e permaneço estável
em equilíbrio imóvel.
Preguiça de domingo?
Não! Repouso.
Quando voo, voo.
Quando poiso, pouso.
" DO PECADO DA OCIOSIDADE
Da ociosidade em nosso linguagem seu nome mais apropriado é preguiça, assi que todo erro da preguiça procede da ociosidade. E dela vem mal, tarde e fracamente começar, continuar e acabar as cousas que bem e cedo se devem fazer. E aquesto por estas seis deferenças, scilicet.
Primeira, per apertamento, empacho e fraqueza do coraçom.
Segunda, do desejar e seguir sobejo vida folgada e viçosa.
Terceira, de pospoer os feitos.
Quarta, por seer movediço e de mao assessego per cuidado, falas ociosas e obras sem proveito.
Quinta, por haver pequena lembrança, sentido, avisamento e percebimento pera o que convem fazer.
Sexta, por seer deleixado, froxo, e tardinheiro em as cousas que faz.
Per todas estas partes, ou cada ua delas, a meu juizo erramos per ociosidade segundo se pode sentir quem em si e nos outros bem consiirar."
Dom Duarte, LEAL CONSELHEIRO, edição crítica de Maria Helena Lopes de Castro, Lisboa, IN-CM, 1998, Cap. XXVI, pp. 102.
Se eu fosse um dia o teu olhar
ResponderEliminarFrio
O mar
Por entre o corpo
Fraco de lutar
Quente,
O chão
Onde te estendo
Onde te levo a razão.
Longa a noite
E só o sol
Quebra o silêncio,
Madrugada de cristal.
Leve, lento, nu, fiel
E este vento
Que te navega na pele.
Pede-me a paz
Dou-te o mundo
Louco, livre assim sou eu
(Um pouco +...)
Solta-te a voz lá do fundo,
Grita, mostra-me a cor do céu.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.
Se eu fosse um dia o teu olhar,
E tu as minhas mãos também,
se eu fosse um dia o respirar
E tu perfume de ninguém.
Sangue,
Ardente,
Fermenta e torna aos
Dedos de papel.
Luz,
Dormente,
Suavemente pinta o teu rosto a
pincel.
Largo a espera,
E sigo o sul,
Perco a quimera
Meu anjo azul.
Fica, forte, sê amada,
Quero que saibas
Que ainda não te disse nada.
Pede-me a paz
Dou-te o mundo
Louco, livre assim sou eu
(Um pouco +...)
Solta-te a voz lá do fundo,
Grita, mostra-me a cor do céu.
Refrão
Pedro Abrunhosa
Caros leitores e comentadores deste blogue: a viajante surpreendida por mim na margem direita do Douro parou para comunicar. Este blogue pára para ganhar fôlego, aspirando continuar a comunicar. A todos se agradece o estímulo trazido ao blogue, num momento em que o seu responsável debatia consigo próprio se valia a pena persistir na fórmula. Afinal, a fórmula encontrada espontaneamente, com o contributo essencial dos comentários, foi diferente: um tema, logo a seguir tocado em distintas declinações, por espíritos inteligentes, cultos, que em tudo superam o do autor, com ele se correspondendo em inquietação e trepidação. Férias merecidas para todos!
ResponderEliminarTodos merecemos uma pausa, mas vou sentir a falta desta companhia diária, ao mesmo tempo surpreendente e estimulante.
EliminarBoas férias!
Fico à espera da rentrée! Com expectativa!
Compreende-se que o autor do blogue deseje introduzir uma pausa no seu labor e partir para férias. Tem todo o direito! E compreende-se que sinta que, de certo modo ou a partir de certa altura, a fórmula re-encontrada para o seu blogue lhe tenha "fugido das mãos", para se transformar num lugar de contribuições muitas vezes excessivas ou desajustadas.
EliminarContudo, vai fazer-nos falta a sempre bela "imago mundi" que os seus posts traziam até nós, bem como os comentários que verdadeiramente o eram, pela pertinência uns, pelo engenho outros.
Não me parecem nem excessivas nem desajustadas as contribuições dos comentadores. Nem mesmo as que falsificam aquelas como excessivas ou desajustadas. Em regra publico-as todas e só não agradeço um a um os posts disponibilizados para não parecer (isso sim) excessivo ou desajustado. De resto não vou de férias, a pausa no blogue para mim é técnica e serve para realimentar reservatórios de escritos e imagens sobre viagens e viajantes. Obrigado M.N., que a vontade de participar, lhe não esmoreça.
Eliminar"CORO DAS AVES:
ResponderEliminarEi, tu aí! Estás a ouvir? É contigo que estou a falar.
POUPA:
Chamaste?
CORO DAS AVES:
Esses dois fulanos, leva-os contigo e dá-lhes de almoçar. E o rouxinol, de voz doce, que canta com as Musas, manda-o cá e deixa-o aqui connosco, para gozarmos um pouco da companhia dele!"
Aristófanes, AS AVES, Trad. de Maria de Fátima Sousa e Silva, Lisboa, edições 70, 1989, pp. 110-111.
Agradeço a todos os comentadores o desafio e a companhia... O meu mais sentido bem-haja ao Autor pela sua generosidade, cultura, erudição e lucidez. Durante algum tempo pude usufruir de duas alvoradas...
ResponderEliminar"O fio da esperança move-se. Ascende. Em cada pérola, olha.
ResponderEliminarOlha fixamente esta palavra que o designa _______ infinitamente. E,
Como um colar dos dias, desfia-a de si próprio ou de si mesma,
Extraia-a do infinito. Surge vazia, ou seja, o jardim abismático
Onde vivemos."
- Maria Gabriela Llansol (2003) O Começo de um livro é precioso. Lisboa: Assírio & Alvim (p. 307)
É o que lhe ofereço neste momento, João.
Agradeço-lhe muito este blogue.
A pausa também é viagem. E viaja.
Então, ainda não retemperou forças?
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