domingo, 22 de dezembro de 2013

Pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais. Mark Twain

Suponho que na América pouco se sabe dos Açores. De todos os passageiros do nosso paquete, não havia um único que soubesse o que fosse sobre estas ilhas. Alguns de nós, extremamente versados na maioria das outras terras, nada sabiam sobre os Açores, a não ser que se tratava de um arquipélago com nove ou dez pequenas ilhas perdidas no Oceano Atlântico, mais ou menos a meio caminho entre Nova Iorque e Gibraltar. Só isso. Estas observações levam-me a incluir aqui um parágrafo sobre os factos puros e duros.
A comunidade é principalmente portuguesa – ou seja, pobre, apática, modorrenta e preguiçosa. Têm um governador civil, designado pelo rei de Portugal, além de um governador militar, que pode assumir plenos poderes e e dissolver o governo cicil, a seu bel-prazer. A população das ilhas perfaz cerca de duzentas mil almas, quase todas portuguesas. Tudo está perfeitamente estabelecido, visto que a região já tinha cem anos quando Colombo descobriu a América. A colheita principal é o milho, que eles cultivam e moem tal e qual faziam os seus tetravós. Usam um arado de uma tábua com uns grampos de ferro; os seus regos insignificantes são escavados pelos homens e pelas mulheres; pequenos moinhos moem o milho, a dez alqueires por dia, e há um moleiro-assistente que alimenta o moinho e outro moleiro-chefe que fica de sentinela não vá o outro adormecer. Quando o vento muda, atrelam umas mulas e dão-se ao trabalho de rodar toda a parte superior do moinho até terem as velas na posição certa, em vez de arranjarem uma maneira de serem as velas a  mudar em vez do moinho. Os bois pisam os espigas de trigo, segundo o costume do tempo de Matusalém. Não há um único carrinho de mão em toda a terra: levam tudo à cabeça, ou em cima das mulas, ou numa carroça com caixa de vime e rodas de madeira maciça cujos eixos giram em simultâneo com as rodas. Não há qualquer arado moderno naquelas ilhas, e nem uma só debulhadora. Todas as tentativas de introduzir essas ferramentas agrícolas falharam. Os bons católicos dos portugueses benzeram-se e pediram a Deus que os guardasse do desejo herético de quererem saber mais do que os seus pais antes deles. O clima é ameno; nunca têm neve ou gelo, e não há uma única chaminé em toda a povoação. Os burros e os homens, as mulheres, e as crianças da família comem e dormem todos na mesma casa, e apresentam-se sujos, cheios de bichos e extremamente felizes. As pessoas mentem e enganam os estrangeiros, e são terrivelmente ignorantes e não têm quase nenhum respeito pelos mortos. Por esta última característica bem se vê que são pouco melhores do que os burros com que dormem e comem. Os únicos portugueses bem vestidos que por lá andam fazem parte de meia dúzia de famílias abastadas, ou então são padres jesuítas ou soldados do pequeno regimento. O ordenado de um trabalhador rural é de vinte a vinte e quatro cêntimos por dia, e o de um bom artífice é cerca do dobro. Contam o dinheiro em réis, a mil por dólar, o que os faz sentirem-se ricos e satisfeitos.

Mark Twain, A Viagem dos Inocentes ou a Nova Rota dos Peregrinos. Lisboa, Tinta da China, 2010, p. 64-65 [1ª edição: 1869].

1 comentário:

  1. O PAÇO DO MILHAFRE

    À beira de água fiz erguer meu Paço
    De Rei-Saudade das distantes milhas:
    Meus olhos, minha boca eram ilhas;
    Pranto e cantiga andavam no sargaço.

    Atlântico, encontrei no meu regaço
    Algas, corais, estranhas maravilhas!
    Fiz das gaivotas minhas próprias filhas,
    Tive pulmões nas fibras do mormaço.

    Enchi infusas nas salgadas ondas
    E oleiro fui que as lágrimas redondas
    Por fora fiz de vidro e, dentro, de água.

    Os vagalhões da noite me salvavam
    E, com partes iguais de sal e mágoa,
    Minhas altas janelas se lavavam.

    Vitorino Nemésio, POESIA (1935-1940), Lisboa, Bertrand, 1986, p. 130.

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