quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Para Enid o mundo resume-se a Inglaterra. Alice Vieira

Sente que o casamento não vai bem.
Decidem então fazer uma viagem, para ambos se afastarem por algum tempo de todas as pressões, das editoras, dos prazos a cumprir, da vida social, do clima de Inglaterra.
Em Outubro de 1930, embarcam no Stella Polaris, num cruzeiro que os há-de levar à Ilha da Madeira e às ilhas Canárias, com passagem por Lisboa.
Enid não é grande amante de viagens.
Nunca há-de ser.
Para ela, o mundo resume-se a Inglaterra. E os estrangeiros são sempre pessoas que bebem demais, que falam demais (e mal...), e com duvidosos hábitos de higiene.
"Onde quer que eu vá, e seja o que for que eu veja noutros países, sei sempre que gosto muito mais de Inglaterra", escreve numa das suas crónicas no Teacher's World (Outubro de 1930).
E ela que, com a descrição de um vulgar jardim, consegue encher páginas e páginas; que é uma conhecedora por excelência de plantas, pássaros e animais; que herdou do pai a paixão pela natureza - tem apenas uma breve descrição da Madeira, na carta semanal aos seus leitores (que publica assim que regressa) afirmando tratar-se do "lugar mais bonito que se possa imaginar", com "trepadeiras de um vermelho em brasa, árvores com flores roxas e casas pintadas a branco, amarelo, rosa e azul". Conta que desceu a encosta numa espécie de trenó - e publica a fotografia.
Da passagem por Lisboa guarda apenas a má recordação de ter sido "quase morta pelo pior motorista do mundo", de " não haver pássaros nas ruas porque os portugueses matam-nos e comem-nos", e do espectáculo de "cães e cavalos magros e mal tratados", terminando com uma exclamação dirigida aos pequenos leitores: "Bobs tem muita sorte em ser um cão inglês, em vez de um cão português, não acham?"

Alice Vieira, O Mundo de Enid Blyton. Lisboa, Texto, 2013, p. 65-66.

1 comentário:

  1. Isto faz-me lembrar um romence de Virgínia Woolf, Viagem.
    Nesse livro, uma das personagens principais não se cansa de dizer quanto a vida deve ser difícil (quase impossível de conceber, aliás) para quem não teve a sorte de ter nascido inglês, ao mesmo tempo que se mostra grata ao destino ser essa a sua condição.

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