sexta-feira, 10 de maio de 2013

Crónica portuense

O carro era um "citroen zx avantage" de cor cinza e quando chegou ao cais de Gaia soltou um barulho suspeito. Não tive dúvidas de que a panela de escape se soltara. O contacto da lata com o empedrado produziu de imediato um forte ruído que a ninguém nas imediações passou despercebido. Solícitos, os passeantes da beira-rio daquela noite de Agosto, rodavam sobre si próprios, espreitavam e traseira do automóvel e advertiam-me: "oh, amigo, olhe que leva o escape a bater no chão".
Fechei o vidro da janela do meu lado para reduzir o volume de som vindo do exterior e dissuadir mais chamadas de atenção de outros veraneantes. Estacionei, logo que pude, para avaliar a situação. Já passava das 22 horas e era sábado. A hipótese de encontrar uma oficina de reparações aberta era tão remota que nem valia a pena perder um minuto a verificá-la. Propus aos miúdos e à mãe que cumpríssemos o programa que ali nos trouxera. Passear junto ao Douro, apreciar o Porto à noite visto de Gaia, comer farturas, procurar uma esplanada para tomar um refresco ou um cálice de vinho do Porto. Estávamos na primeira metade dos anos 90, o cais de Gaia ainda não tivera a intervenção que mais tarde a Câmara presidida por Luis Filipe Menezes planeou. Eu viera passar uma semana de férias ao Porto para mostrar a cidade e os arredores aos três filhos e arrendara uma casa de turismo rural perto de Entre-os-Rios.
Por volta da meia noite, perante os sinais de cansaço dos mais novos, voltamos ao "zx" e tomamos o caminho do regresso. O mesmo ruído incomodativo e indisfarçável e a mesma solicitude preocupada dos retardatários visitantes do cais. Percorri lentamente o tabuleiro inferior da ponte D. Luis. A minha inquietação aumentava na proporção do som, cada vez mais ensurdecedor, emitido pela lata arrastada ao longo do pavimento. Os miúdos e a mãe, em silêncio, acentuavam o dramatismo da situação. O cheiro dentro do carro começava a ser insuportável. O risco de provocar danos na viatura eram evidentes. Conseguiria chegar, sem mais incidentes, a Entre-os Rios? A distancia a que estávamos do destino parecia aumentar a todo o momento.
A margem portuense do Douro, nas noites quentes de Verão, em especial aos fins de semana, é ocupada por pescadores. Alguns deslocam as famílias, que se sentam no muro de proteção ou em bancos e cadeiras de praia trazidas de casa. A concentração de canas e outros apetrechos da pesca amadora, de pescadores e seus acompanhantes cria um cordão de animação nocturna singular na bordadura norte do rio, sobretudo ao longo do percurso que vai da ponte da Arrábida até à ponte do Infante.
Logo a seguir à saída da ponte, quando o passeio da rua Eng. Gustavo Eiffel ainda se não estreitou, um desses pescadores fez-me sinal de parar e orientou-me o estacionamento em cima do passeio. Era um homem baixo e magro. Tinha um cigarro de confecção manual no canto dos lábios. Mal parei o motor, ainda não tinha saído completamente de dentro do veiculo, e já ele se deitara debaixo do carro, com agilidade e economia de gestos, para observar o problema. Levantou-se, arrancou a pega de arame da lata de zinco onde presumo guardaria o peixe pescado, e voltou para a mesma posição. Pouco tempo depois, efectuadas as operações de voltar a prender a panela de escape, declarou-me: - "Pode andar à vontade, o escape já não cai, mesmo que vá com ele até ao Algarve".
- "Você salvou-me a vida", declarei-lhe. "Todos nós" - e apontei para o interior do carro - "lhe estamos muito agradecidos. Dá-me licença que lhe ofereça uma pequena importância em sinal de gratidão" Ele recusou. Eu insisti, ele disse que não, de forma peremptória. Eu arrisquei: - "É uma pequena importância, para você beber uma cerveja com os seus amigos".
Ele estava porém sozinho, como eu já devia ter notado, e respondeu: - "Só bebo em companhia e, se me quer oferecer uma cerveja, então vai ter que comprar uma para mim e outra para si". Se eram estas as regras, dispus-me a cumpri-las. - "Vou então à procura de cervejas" - e preparei-me para voltar para trás, em busca de um restaurante que mas vendesse. Naquele tempo, ainda o negócio do abastecimento de cachorros e bebidas aos pescadores e outros noctívagos se não tinha instalado em roulottes junto as arribas de Miragaia. Adivinhando a intenção, o meu interlocutor indicou-me: - "Venha comigo". Atravessamos a rua e dirigimo-nos a um muro alto de pedra, onde numa cavidade que mal se distinguia, ele puxou um cordel, ouvindo-se uma sineta e uma voz que perguntava: - "Que queres?" - "Quatro cervejas" - respondi eu. Pouco depois descia um cesto, com as quatro cervejas e onde depositei a quantia que me foi pedida.
Regressámos junto do carro e das canas de pesca. Os miúdos brincavam cá fora, passada a hora de dormir. Entreguei as duas cervejas ao meu inesperado salvador e preparei-me estoicamente para beber as outras duas. Ele riu-se pela primeira vez.
- "Pode ir andando. Vá deitar as crianças. E aproveite para beber as cervejas com a família".

3 comentários:

  1. Quer melhor prova de que Deus providencia sempre? E por vezes nem manda só um anjo, envia um bando de asas aladas que desce do céu para nos salvar de aflições.
    Sempre que sujeitos passivos, a generosidade surpreende-nos e ainda mais quando o sujeito ativo está muito longe de ser aquele de quem se esperaria o rasgado gesto. Será que acreditamos pouco?
    Este texto coloca-nos tão bem no cenário onde acontece a ação, que vivemos com a família o atribulado passeio dessa noite de verão. A atitude calma perante o inevitável e a descrição do encontro com o pescador fazem desta crónica um pedaço de prosa verdadeiramente delicioso.
    Será que os leitores deste blogue serão obsequiados com mais “doces” desta qualidade?
    Eu, que “gulosa” me confesso, fico ansiando por isso.

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    1. Obrigado, cara (e rara) leitora, pelo aplauso e pelo incentivo.

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  2. As histórias mais espantosas são como esta, assim, desencadeadas por situações aparentemente aleatórias, ou até mesmo irritantes.
    Que mundo de descobertas, afinal!
    O pescador que sabia concertar automóveis; o inusitado mercado de cervejas, fora de horas, instalado do outro lado de um muro; a eficácia do método de vendas nele praticado; ironia final do pescador, um sábio.
    A realidade aqui contada, muito para além da ficção, uma vez mais. As oportunidades que a vida nos dá de sermos protagonistas de histórias fantasticamente reais...
    Fazem valer a pena a vida, mesmo.

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