terça-feira, 23 de abril de 2013

Comparamo-nos com essas pessoas. Orhan Pamuk


A meio da noite, quando dormimos profundamente, o nosso autocarro entre numa pequena vila. As luzes da cidade são mortiças e os seus edifícios estão em mau estado. Não há ninguém nas ruas. Mas, do alto das janelas do autocarro, vemos uma casa cujas cortinas estão abertas. Talvez o autocarro pare aí num semáforo. E, no meio de toda esta actividade, damos subitamente por nós a olhar pelas cortinas abertas de uma casa numa rua lateral, numa pequena vila onde não conhecemos ninguém, onde vemos pessoas a fumar de pijama, a ler o jornal ou a ver as últimas notícias antes de desligarem a televisão. Todos os que já viajaram de autocarro pela Turquia durante a noite passaram por isto. Por vezes, o nosso olhar encontra-se com o destas pessoas na privacidade das suas casas. Num instante, passamos de cem quilómetros por hora para uma paragem completa, e deparamos com os detalhes mais embaraçosos e íntimos das suas vidas vagarosas. Estes são momentos ímpares, em que a vida nos mostra, desta misteriosa forma, que o mundo é feito de muitas vidas diferentes e de muitas pessoas diferentes. Quando abrimos um frigorífico, vemos recipientes diversos e tomates que nos fazem invejar essas outra espécie de vida. Comparamo-nos com essas pessoas. Interessamo-nos por este ou aquele aspecto das suas vidas, e gostaríamos de estar nessas mesmas vidas. Sonhamos ser mais como essas pessoas, de nos tornarmos nelas. Ser atraído por outra vida é compreender quanto as nossas próprias vidas são relativas, mas também únicas.

Orhan Pamuk, Outras Cores. Ensaios Sobre a Vida, a Arte, os Livros e as Cidades. Lisboa, Editorial Presença, 2009, p. 267.

1 comentário:

  1. Extraordinário este texto.
    Dá logo vontade de ler todo o livro de Pamuk.
    - Isabel X -

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