terça-feira, 16 de abril de 2013

Acho que realmente te trago comigo, não só dentro, mas um pouco a meu lado. António José Saraiva

Paris, 4 de Agosto de 1964


Querida

Não são ainda 5 horas da manhã e estou há menos de uma hora num cafezinho da praça Villiers, que por grande sorte encontrei aberto. Afinal, a porteira não abriu (era de esperar) e não tive outra solução senão instalar-me no banco do meu jardim. O banco vai ficar histórico. Como um clochard, abri o saco, tirei a garrafa de cerveja e o pão. Depois, tratei de me estender ao comprido. Dormitei, lutei contrato frio até às quatro da manhã. Por fim, tive de me levantar, o frio expulsou-me do banco. Passeei pelos boulevards próximos, desertos. Depois, lembrei-me de que havia 700 e tal francos comigo e tornei-me circunspecto, cada vez que via um vulto ao longe. O pior está passado. Com uma chávena de chá, um croissant e uma aspirina espero expulsar a fadiga que me atazana os rins e me traz cambaleante. É um fácies de Paris inutilmente trabalhoso, porque tencionava reservar o mau passadio deste noite para a viagem. O corpo pagaria o ganho de tempo. Assim, o corpo deitou a energia fora inutilmente, como se estivesse muito folgado e fresco, depois da corrida pelos cais e corredores da estação, depois das caminhadas de hoje por Paris a fazer isto e aquilo. Aquelas caminhadas que tu também conheces e a que dás prodigamente o corpinho.
Querida,maçada vez que disponho de um vão de tempo, ponho-me a falar contigo por escrito. É o que imediatamente me apetece. E posso-te dizer coisas absolutamente insignificantes, como vês. No entanto, não sofro agudamente com a tua ausência. Acho que realmente te trago comigo, não só dentro, mas um pouco a meu lado. Como se tu realmente estivesses aqui e não te pudesse falar de viva voz. Mas, às vezes, sou chamado à realidade e penso, por exemplo, que, enquanto eu vou apanhar sol e mar, tu ficas aí a secar, no barulho dos tramways e nos cafés.
No entanto, minha Querida, pensa que o próprio isolamento em que estás e a aridez da vida que levas são uma oportunidade para te concentrares intelectualmente. Há coisas que só de fazem numa certa incomodidade exterior. Estou certo de que vais trazer trabalho feiro de Vincennes, ao passo que eu não ou fazer nada antes do regresso a Paris. Também vamos lá que há três anos não conheço praia e estou mesmo a precisar de me espreguiçar na areia. Estou intoxicado, olheirento, amarelo. Espero vir melhor.
A coisa que mais me incomoda na tua ausência é eu não saber como estás passando, se te sentes bem, se mal. As tuas notícias são importantes para mi, não só porque me confortam, mas também (e principalmente) porque me informam a teu respeito. Com atraso, pelo menos, de 24 horas, mas já é alguma coisa. É por isso, também, que gostaria de te poder telefonar e que telefonasses, se alguma vez tivesses necessidade disso. 
Despedi-me ontem do Victor Knoll, que vai para o Brasil dentro de 15 dias. Levou recados meus para várias pessoas, e perguntou-me, especialmente, se continuo interessado em ir para lá. A propósito: tive a ideia de tentar, daqui, arranjar maneira de mandar por entidades competentes o teu curriculum teatral com vista a mandares para lá. Falaremos nisso quando nos virmos.
Faltam 20 para as 5. O dia está completamente claro. Acho que é uma estupidez as pessoas estarem na cama a esta hora. Se tentássemos, em Outubro, começar o trabalho às 6 da manhã? Seriam 6 horas até ao meio dia.
Hoje, fico por aqui, minha Presença. Mas podes falar comigo sozinha, que eu também estou a falar contigo.

António

P. S. - Imagina que te faço muitas tremuras, que te ponho a mão pelo ombro (é um pensamento que me veio ontem muitas vezes), que te beijo, que te ponho tida confortada de carinho. Vontade não falta!

Ernesto Rodrigues (org.), Cartas de Amor de António José Saraiva a Teresa Rita Lopes. Lisboa, Gradiva, 2013, p. 22-23.

2 comentários:

  1. Que amor tão sereno, meigo e amigo é expresso nesta carta. Grande perda a de não se cultivar já este hábito de escrever cartas, mesmo que se usem outros meios mais imediatos de comunicação.
    Há uma atitude de maior reflexão numa carta, parece-me. Além disso, é um género literário que se perde.

    Maria Gabriela Llansol, num texto que já citei aqui, aponta as várias maneiras que um homem tem de "possuir a mulher que o tem na vontade". As duas primeiras são o olhar e a ausência.

    - "da sebe ao ser", Lx, 1988, Edições Rolim (p. 190)

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  2. Pensando em António José Saraiva, é um tipo de viagem com características bem próprias, o exílio!

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