quarta-feira, 5 de junho de 2013

Só a razão consciente e a virtude racional podem resolver os problemas duma idade adulta da humanidade. Antero de Quental

Meu caro amigo [Jaime de Magalhães Lima],
Li com prazer - ou antes, reli, porque já as conhecia da Província - as suas impressões de viagem. São notas fugitivas, mas não são banais, que é o que importa: dizem sempre alguma coisa e às vezes com bastante originalidade. Quanto ao seu estilo, parece-me agora feito: a frase corre-lhe fácil, natural, à vontade, e vê-se que esse estilo é o seu próprio.
Tenho pena de que se não tivesse demorado mais na Rússia, para nos poder dar mais algumas impressões daquela nação destinada a exercer influência decisiva na futura civilização. Que espécie de influência? Confesso-lhe que tenho graves apreensões a tal respeito e que desconfio bastante de gente de tanta imaginação. O Tolstoi é certamente admirável com indivíduo; mas que significa o que pode dar de si aquela renovação do Evangelismo? O pensamento da Rússia, até agora, parece-me perfeitamente caótico. Mas o mundo começa a estar tão cansado de lógica, de ciência, de análise, que talvez se deixe levar mais uma vez pelos entusiastas e visionários. Creio que é isto que explica o engouement actual pelos russos. Mas, em suma, será sempre necessário voltar à razão e aos seus processos severos? Só a razão consciente e a virtude racional podem resolver os problemas duma idade adulta da humanidade. É verdade que, quando a dita razão, como já tem sucedido, se mostra inferior à sua tarefa, hesita e abdica, o inconsciente, o instinto, o sentimento voltam a entrar em cena. Mas não posso considerar tal facto senão como um retrocesso. Foi isso o cristianismo. Pode ser que um semelhante retrocesso esteja em preparação; então os russos, como os entusiastas e instintivos por excelência, representarão um papel proeminente. Mas creio que isso será equivalente à destruição do espírito moderno. 
E adeus.
Do seu do coração
Antero de Quental


Cartas de Vila do Conde de Antero de Quental. Introdução, organização e notas de Ana Maria de Almeida Martins. Porto, Lello & Irmão, 1981, p. 270-271.

1 comentário:

  1. Tenho uma admiração total, inexcedível, pelos autores russos, pela literatura russa, A melhor.

    Li algures, há pouco tempo, que Tchekov escreveu como se sabe sob a égide de quem o antecedeu, dos autores russos antes dele. Preocupado, sem saber como proceder, perante a grandeza deles. E saindo-se muito bem dessa preocupação, aliás.

    Agora fico sabendo que Antero de Quental se referiu à literatura russa nestes termos. A questão do caos e da recomposição a partir dele é fundamental à descoberta da nossa humanidade. Na literatura: na vida.

    Já tive ocasião de escrever que Antero, antes de Max Weber, disse ter sido o catolicismo uma das "causas da decadência dos povos peninsulares". Como ele era premonitório, afinal. Mais que muitos, mais conhecidos e divulgados do que ele, como aqui se pode constatar. Uma vez mais.

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