Eu não sou um sedentário por enfermidade, ou por insociabilidade. Eu sou um sedentário por hábito. Há homens assim: eu só compreendo a vida em chinelos. A minha actividade é toda cerebral. Nenhuma actividade motora. A minha razão papa léguas. Todas as manhãs pelo menos dá um passeio higiénico, do real para o irreal, do abstracto para o concreto. É o que eu chamo fazer apetite para o almoço. O meu corpo não se move. Habito o planeta, mas não ocupo dentro dele mais espaço do que o meu prédio. Verdadeiramente, não atravanco o corpo social.
Por estas razões não fui ver as festas.
Em vão me foram feitos todo o género de convites - públicos e familiares. A todos resisti. A perspectiva do ar livre assustou-me como a de uma viva contrariedade pessoal. Já uma vez experimentei: é horrível. Sempre que vejo por cima da minha cabeça o céu, tenho a impressão de que estou perdido no Universo. O Chiado dá-me todas as vertigens do infinito.
Não fui.
Não fui, mas não se imagine que me desinteressei dos acontecimentos. Eu sou um sedentário, mas sou um ser social. Não saio de casa, mas tenho todas as curiosidades de uma praça pública. Não se dá em Lisboa uma desordem que eu não meta o nariz. O que faço é ler os jornais. Ah! os jornais são o meu vício. Ainda a manhã não desponta, e, quando toda a gente pede café com leite, já eu peço jornais. Todos os jornais! Não o faço por menos. Os médicos já mo proibiram, bem como ao tabaco. Durante algum tempo mesmo estive de dieta: lia só o Notícias. Depois consentiram-me as Novidades. Eu abusei e, daí a pouco, voltava à mesma. Atribuo a isso a minha dispepsia.
Se não fui portanto à festas, aguardei com frenesi os jornais. Todo eu era curiosidade - porque negá-lo? As festas para mim eram os jornais. Ler os jornais ou ver as festas não era a mesma coisa: era melhor. Afinal, do Chiado, recebendo empurrões, cotoveladas, patadas, o que veria eu? Uma face apenas, fugitiva, de um grande facto. Da cama via-o por todos os lados.
[...]
Ai de mim. Os jornais completamente malograram a minha expectativa!
Eu esperava impressões. Os jornais deram-me nomes. Eu esperava sensações. Or jornais deram-me números.
Li, reli nesses dias festivos toda a imprensa quotidiana e não vi - nada!
[...]
A minha decepção foi enorme - a minha decepção e o meu despeito. Desde que me votei ao regime celular da vida sedentária, e a primeira vez que a deploro. Eu perdi - reconheço-o - um curioso espectáculo.
O prestígio a imprensa moderna e não sei se o hábito de ler jornais franceses, tinham-me em descanso. Em verdade eu não saía, porque me não era preciso sair. Os jornais saíam por mim e vinham com pontualidade a minha casa contar-me nula linguagem expressiva o espectáculo das coisas e dos homens. Que mais queria eu? Era prático, cómodo e poupava-me calçado.
Depois do meu insucesso não caio noutra. Já mandei fazer um lar de botas e vou sair, recuperar o mundo externo e o ar livre. Se me deixo ficar em casa, que ideia farei eu dentro em pouco da vida e da civilização? Através dos jornais que me informam, dentro em pouco eu não teria da vida senão uma concepção algébrica e da civilização a ideia extravagante de que nela passaram a predominar os cocheiros e os polícias.
Para as minhas necessidades cívicas já mandei assinar o Diário do Governo. Para o resto, de futuro, prescindo de jornais. De futuro, o meu jornal - sou eu.
João Chagas, "Monólogo de Sedentário", in Posta Restante. Cartas a Toda a Gente. Lisboa, Livraria Editora Viuva Tavares Cardoso, 1906, p. 191-198.
Extraordinário texto! De uma ironia fina, a toda a prova. Como eu gosto. Exercida através do próprio que aqui se faz autor/personagem: "As festas para mim eram os jornais.", diz.
ResponderEliminarJá se sabia que a consciência de si e dos outros, a noção de realidade se alteraram de acordo com os meios que fomos tendo para os reproduzir e noticiar. Muitos autores nos alertaram para isso, analisando as novas tecnologias. Mas já era possível detetar essa tendência no tempo em que apenas havia jornais, segundo este precioso testemunho de João Chagas.
O que o leva a reconhecer ter procedido mal em faltar às festas. Porquê? Pura e simplesmente porque os jornais não prestavam. Porque se cumprissem a sua função, ele não desistiria da opção que tomara. Conclusão: "De futuro, o meu jornal - sou eu."