quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Com o porão cheio de saudades. Italo Calvino

- ... Então é mesmo uma viagem na memória, a tua! 
O Grão Kan, sempre de ouvido atento, estremecia na cama de rede sempre que pressentia no discurso de Março uma inflexão lamentosa.
- É para fazer passar uma carga de nostalgia  que foste tão longe! - exclamava, ou então:
- Regressas das tuas expedições com o porão cheio de saudades! - e acrescentava, com sarcasmo:
- Pará dizer a verdade, magras aquisições para um mercador da Sereníssima!
Era este o ponto para que tendiam todas as perguntas de Kublai sobre o passado e sobre o futuro, há uma hora que brincava com isso como o gato e o rato, e, finalmente, punha Marco entre a espada e a parede, assentando-lhe um joelho no peito, agarrando-o pela barba:
- Era o que queria saber de ti: confessa o que contrabandeias: estados e ânimo, estados de graça, elegias!

Italo Calvino, As Cidades Invisíveis. Lisboa, Edições Teorema, 1990, p. 101.

2 comentários:

  1. Outro dia li em "Os Passos em Volta", de Herberto Helder, que "Todos os lugares são no estrangeiro." Pareceu-me verdade.

    Parafraseando, afirmo que todas as viagens são na memória.

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  2. IR LONGE

    Certa manhã, seria domingo, dia de festa? ela saiu para a estrada e da estrada, com aquela impressão de liberdade furtiva e aguda que lhe entrava no corpo, posto o pé fora da quinta, achou o campo maravilhoso. Nunca lhe parecera e nunca mais lhe pareceu tão radioso o ar, tão linda a floração campestre, tanta novidade em tudo, como naquela ocasião. Lembrando-se de tão especial sensação ou surpresa, põe naquela data, que foi a dos seus treze anos iniciados, uma ideia de eclosão nítida da vida ou do mundo.

    Irene Lisboa, VOLTAR ATRÁS PARA QUÊ?, Lisboa, Liv.ª Bertrand, s.d., pp. 20-21.

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