Em primeiro lugar, descobres em Calvino a forma como Veneza serve de referencia no seu percurso através de cidades invisíveis. Marcas encontro com Palomar, o seu porta-voz, sempre a elogiar as cidades contidas em círculos: encerradas nas suas muralhas, rodeadas de água, fecham-se sobre si próprias, isoladas, centradas no seu nome, exibem a sua identidade, distinguindo-se umas das outras pelos seus monumentos. Utopias patrimoniais do lugar urbano, os seus corpos dão origem à sociedade, o seu sítio e os seus costumes associam-se ara fazer de qualquer lugar um espelho de lugares habitados. As cidades acolhem em simultâneo a riqueza e os homens, o comércio e as artes. Projectam-se numa série de círculos concêntricos no meio de um espaço vazio e muitas vezes hostil. Através do traçado em espiral das ruas, do percurso de gente que sobe degraus em caracol, do ventre redondo da torre ou do muro de protecção dos poços, das cúpulas, dos cones dos sinos, do espaço fechado dos terraços, ou ainda das colunas dos capitéis e dos anéis das mulheres, Palomar descreve figuras e objectos que, por efeito de redundância, remetem para a perfeição do círculo, símbolo da aliança. A forma das comunidades - e existem múltiplas - como das multidões, inscreve-se no circular, no fechado, no em-si, no centro e, enfim, na unanimidade: "Assim, em Anastásia, a cidade surge-te como um todo no qual nenhum desejo será perdido, e de que fazes parte, pois ela própria beneficia de tudo aquilo de que faças parte e uma vez que ele beneficia de tudo o que tu não beneficias, nada mais nos resta que habitar esse desejo e ser feliz." [Italo Calvino]. Os templos e os palácios, os mercados sob as arcadas, ordenam um lugar autárcico, uma forma global da cidade-círculo: a matriz. Todas estas utopias urbanas se reportam a Veneza, que, de todo o modo, as incarna.
Jacques Beauchard, Venise. Quand la Mer se Tient au Centre de la Ville. Paris, L'Harmattan, 2009. P. 13-14.
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