Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo então? Ma se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G. H. 2a edição. Lisboa, Relógio de Água, 2013.
P. 15-16.
Como haver guia para semelhante viagem?
ResponderEliminarTão extrema(da)mente singular ela é?
Ferreira Gullar questiona-se sobre a experiência que culmina essa viagem dizendo:
"É elevá-la à condição, mesmo, da hóstia consagrada, que simboliza o corpo de Cristo, a comunhão com o divino. É nisto que talvez consista a paixão segundo G.H.: não se trata de redimir a humanidade do pecado que a afastou de Deus mas, sim, de redimi-la, pela volta à origem, ao mistério insondável da vida, que antecede a consciência humana. Se o conhecimento foi a causa do pecado, a redenção estará na renúncia a ele, na fusão da individualidade na matéria do mundo."
Ferreira Gullar, "Para não dizer o dizível" in Clarice Lispector A hora da Estrela, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 40