Em primeiro lugar, descobres em Calvino a forma como Veneza serve de referencia no seu percurso através de cidades invisíveis. Marcas encontro com Palomar, o seu porta-voz, sempre a elogiar as cidades contidas em círculos: encerradas nas suas muralhas, rodeadas de água, fecham-se sobre si próprias, isoladas, centradas no seu nome, exibem a sua identidade, distinguindo-se umas das outras pelos seus monumentos. Utopias patrimoniais do lugar urbano, os seus corpos dão origem à sociedade, o seu sítio e os seus costumes associam-se ara fazer de qualquer lugar um espelho de lugares habitados. As cidades acolhem em simultâneo a riqueza e os homens, o comércio e as artes. Projectam-se numa série de círculos concêntricos no meio de um espaço vazio e muitas vezes hostil. Através do traçado em espiral das ruas, do percurso de gente que sobe degraus em caracol, do ventre redondo da torre ou do muro de protecção dos poços, das cúpulas, dos cones dos sinos, do espaço fechado dos terraços, ou ainda das colunas dos capitéis e dos anéis das mulheres, Palomar descreve figuras e objectos que, por efeito de redundância, remetem para a perfeição do círculo, símbolo da aliança. A forma das comunidades - e existem múltiplas - como das multidões, inscreve-se no circular, no fechado, no em-si, no centro e, enfim, na unanimidade: "Assim, em Anastásia, a cidade surge-te como um todo no qual nenhum desejo será perdido, e de que fazes parte, pois ela própria beneficia de tudo aquilo de que faças parte e uma vez que ele beneficia de tudo o que tu não beneficias, nada mais nos resta que habitar esse desejo e ser feliz." [Italo Calvino]. Os templos e os palácios, os mercados sob as arcadas, ordenam um lugar autárcico, uma forma global da cidade-círculo: a matriz. Todas estas utopias urbanas se reportam a Veneza, que, de todo o modo, as incarna.
Jacques Beauchard, Venise. Quand la Mer se Tient au Centre de la Ville. Paris, L'Harmattan, 2009. P. 13-14.
quarta-feira, 31 de julho de 2013
terça-feira, 30 de julho de 2013
segunda-feira, 29 de julho de 2013
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. Clarice Lispector
Será preciso coragem para fazer o que vou fazer: dizer. E me arriscar à enorme surpresa que sentirei com a pobreza da coisa dita. Mal a direi, e terei que acrescentar: não é isso, não é isso! Mas é preciso também não ter medo do ridículo, eu sempre preferi o menos ao mais por medo também do ridículo: é que há também o dilaceramento do pudor. Adio a hora de me falar. Por medo?
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo então? Ma se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G. H. 2a edição. Lisboa, Relógio de Água, 2013.
P. 15-16.
E porque não tenho uma palavra a dizer.
Não tenho uma palavra a dizer. Por que não me calo então? Ma se eu não forçar a palavra a mudez me engolfará para sempre em ondas. A palavra e a forma serão a tábua onde boiarei sobre vagalhões de mudez.
E se estou adiando começar é também porque não tenho guia. O relato de outros viajantes poucos fatos me oferecem a respeito da viagem: todas as informações são terrivelmente incompletas.
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G. H. 2a edição. Lisboa, Relógio de Água, 2013.
P. 15-16.
quarta-feira, 17 de julho de 2013
segunda-feira, 15 de julho de 2013
sexta-feira, 5 de julho de 2013
No Rio. Crónica sobre a mobilidade
A edição de hoje, dia 20 de Junho, da revista Veja, que se edita em São Paulo, chamava a titulo da capa "Os sete dias que mudaram o Brasil", antecedido de uma impressiva chamada de atenção: "Edição histórica". Nestes sete dias, um número que se estima superior a 1 milhão de brasileiros manifestou-se nas principais cidades brasileiras, em moldes até aqui inéditos. As manifestações aparentemente não tiveram enquadramento político nem sindical, foram convocadas através das redes sociais e outras formas de comunicação que recorrem à internet e ao telemóvel.
Os manifestantes empunharam cartazes com reivindicações muito díspares, o que dificultou a leitura dos objectivos centrais do movimento. É possível, no entanto, detectar alvos comuns nos protestos: a deficiente cobertura e qualidade dos serviços públicos, a corrupção e a sua impunidade, os gastos excessivos com obras de reduzido alcance social, como as da Copa do Mundo, por cuja realização o Brasil terá a responsabilidade em 2014. Mas o rastilho que incendiou as ruas contra o poder político foi o aumento do preço das passagens de ónibus, ou seja de um dos mais utilizados meios de transporte de massas suburbano no Brasil.
Aterrei no Rio de Janeiro exactamente no primeiro dia dos 7 que a Veja indicia, talvez apressadamente, numa mudança do país. Durante esta semana cruzei a cidade, de taxi, metro e combóio, visitei zona sul e zona norte, bairros ricos e de classe média, do centro antigo e áreas faveladas. Pelo que me pude aperceber, o protesto tem pouco que ver com o preço do bilhete no consumidor, pois o pagamento do transporte dos trabalhadores está a cargo dos empregadores e uma extensa tipologia de utentes goza de isenções ou reduções. O que de facto esteve em causa foi a qualidade do serviço de transporte.
Esta, pude verificar directa e indirectamente, é muito baixa. O investimento na modernização das infraestruturas e equipamentos da rede ferroviária, por exemplo, tem sido nulo e os cidadãos que habitam na periferia do Rio, a maioria, gasta 4 a 6 horas na viagem casa-emprego, emprego-casa.
Será esse o destino inexorável das grandes cidades, das megapolis (a cidade do Rio tem cerca de 6,5 milhões de habitantes)?
As grandes cidades europeias exibem com orgulho a sua evolução positiva nos últimas décadas: recuo do transporte baseado no automóvel familiar movido a gasóleo ou gasolina, diminuição do tempo médio de deslocação centro-periferia. Pelo contrário os indicadores das grandes cidades dos países sul-americanos, africanos e asiáticos mostram uma tendência inversa.
O arquitecto Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitectos Brasileiros, apontava, na edição do Globo de ontem, o dedo à ausência de planeamento urbano. A falta de investimento continuado no transporte publico explica o resto. Uma activista das manifestações desta semana deixou-se fotografar com o seguinte cartaz: "País desenvolvido não é onde pobre tem carro, é onde o rico anda de transporte público!!!"
[Texto publicado no semanário Região de Leiria a 5 de Julho de 2013]
Os manifestantes empunharam cartazes com reivindicações muito díspares, o que dificultou a leitura dos objectivos centrais do movimento. É possível, no entanto, detectar alvos comuns nos protestos: a deficiente cobertura e qualidade dos serviços públicos, a corrupção e a sua impunidade, os gastos excessivos com obras de reduzido alcance social, como as da Copa do Mundo, por cuja realização o Brasil terá a responsabilidade em 2014. Mas o rastilho que incendiou as ruas contra o poder político foi o aumento do preço das passagens de ónibus, ou seja de um dos mais utilizados meios de transporte de massas suburbano no Brasil.
Aterrei no Rio de Janeiro exactamente no primeiro dia dos 7 que a Veja indicia, talvez apressadamente, numa mudança do país. Durante esta semana cruzei a cidade, de taxi, metro e combóio, visitei zona sul e zona norte, bairros ricos e de classe média, do centro antigo e áreas faveladas. Pelo que me pude aperceber, o protesto tem pouco que ver com o preço do bilhete no consumidor, pois o pagamento do transporte dos trabalhadores está a cargo dos empregadores e uma extensa tipologia de utentes goza de isenções ou reduções. O que de facto esteve em causa foi a qualidade do serviço de transporte.
Esta, pude verificar directa e indirectamente, é muito baixa. O investimento na modernização das infraestruturas e equipamentos da rede ferroviária, por exemplo, tem sido nulo e os cidadãos que habitam na periferia do Rio, a maioria, gasta 4 a 6 horas na viagem casa-emprego, emprego-casa.
Será esse o destino inexorável das grandes cidades, das megapolis (a cidade do Rio tem cerca de 6,5 milhões de habitantes)?
As grandes cidades europeias exibem com orgulho a sua evolução positiva nos últimas décadas: recuo do transporte baseado no automóvel familiar movido a gasóleo ou gasolina, diminuição do tempo médio de deslocação centro-periferia. Pelo contrário os indicadores das grandes cidades dos países sul-americanos, africanos e asiáticos mostram uma tendência inversa.
O arquitecto Sérgio Magalhães, presidente do Instituto dos Arquitectos Brasileiros, apontava, na edição do Globo de ontem, o dedo à ausência de planeamento urbano. A falta de investimento continuado no transporte publico explica o resto. Uma activista das manifestações desta semana deixou-se fotografar com o seguinte cartaz: "País desenvolvido não é onde pobre tem carro, é onde o rico anda de transporte público!!!"
[Texto publicado no semanário Região de Leiria a 5 de Julho de 2013]
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